POESIA E BLOGS (III)
JOSÉ MÁRIO SILVA
Nasceu em paris, em 1972. Recordista de prémios no DNJovem, leitor compulsivo (de tal maneira que deu reportagem na Ler no Inverno de 1997). Licenciou-se em biologia. É jornalista, editor-adjunto do DNA. Publicou este ano uma sequência de poemas incluído em Malcata 7 Geografias da editora Alma Azul. [convém também destacar os excelentes contos curtíssimos que tem publicados nas revistas v-ludo e 365 e na colectânea de jovens criadores Blémias, Ciápodes e Licornes - co-edição da Íman editores e do Clube Português de Artes e Ideias, em 2001]
Além disso, dirige com o irmão Manuel uma pequena empresa familiar, que deixam à guarda do pai durante as férias.
RUÍNAS
De súbito tudo faz sentido, a casa em
ruínas, o apito do comboio ao longe,
a noite densa rasgada pelos pirilampos,
ainda a Primavera debruçada nas águas
do rio, em reflexos de dálias e açucenas
enquanto outras flores ardem num
punho que se fecha; adeus, tudo faz
sentido, a estrada por onde já não
chega o autocarro verde, o Outono
descendo sobre as árvores e as colinas,
o comboio a apitar, o aceno através
da bruma; adeus, as ruínas ficam
mas eu não.
(in Dez, livro colectivo em edição dos autores,1995)
BESTIÁRIO MÍNIMO
I. corvos
Vírgulas suspensas
entre ciprestes.
II. grilos
Já se calaram há muito
mas o seu canto ficou a pairar
sobre a seara, dentro da cabeça.
III. salmões
O rio original, espécie de útero,
chama por eles. E eles voltam.
IV. rãs
Vivem na margem do lago,
à espera de uma fábula ou
de um verso japonês.
«O SONHO DE JOSÉ» [PAULA REGO]
Há um velho adormecido (ou morto) numa
cadeira de braços e uma rapariga que o desenha,
atenta. Não interessa saber mais nada: ela desenha,
ele dorme (ou está morto). O anjo vem de outro quadro
e não interfere na história, é um anjo apenas, intangível
como todos os anjos. Para lá das paredes talvez dentro
do sonho, duas raparigas brincam, um cão morde com
raiva o tornozelo de uma mulher e há o rinoceronte que
nos faz pensar em Dürer. Não interessa saber mais nada.
(de Nuvens & Labirintos, Gótica, 2001)
«ICH HABE GENUG» (BWV 82)
Para o Manel
Não é uma questão de lógica.
O milagre é o que está para além
da pauta, a lenta melodia do oboé
desenhando a sua arquitectura aérea.
Agora vejo a poeira suspensa na luz,
o apogeu do outono numa cidade
que se recusou a ser minha, as
armas serenas da tristeza. A voz
de Hans Hotter – tão escura, tão
resignada – traz-me ainda, do Velho
Testamento, uma capitulação feliz.
NO CIMO DAS ESCADAS
Foi a meio de um sonho turvo.
Vi-o à porta de casa, o corpo
tremendo, a pele eriçada por
um frio antigo. Era Primo Levi
no cimo das escadas, sozinho
– um segundo antes da queda.
O sonho era turvo. Ele não.
Continuava de pé, já morto.
Os olhos magoados, as mãos
abertas em concha, como se
nelas ainda houvesse restos
do que não disse. E cinzas.
(in Um poema de vez em quando, n.º 3 - outono de 2002, revista on-line de editora Elefante)
26.7.03
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