CECÍLIA MEIRELES
CENÁRIO
No jardim que foi de Gonzaga,
a pedra é triste, a flor é débil,
há na luz uma cor amarga.
Os espinhos selvagens crescem,
única sorte destas árvores
destituídas de primavera,
secas, na seca terra ingrata,
que é uma cinza de inúteis ervas
solta sob os pés de quem passa.
No jardim que foi de Gonzaga,
oscila o candeeiro sem lume,
apodrece a fonte sem água.
Longas aranhas fulvinegras
flutuam nas moles alfombras
do antípoda universo aéreo.
Um flácido silêncio adeja
sobre esses restos de uma história
de sonho, amor, prisões, seqüestros,
degredos, morte, acabamento…
Vagas mulheres sem notícias,
pobres meninos inocentes
circulam por essas escadas,
pisam as folhas secas, mostram
portas de anil desmoronado…
A névoa que enche os aposentos
não vem do dia nem da noite:
vem da cegueira: ninguém sente
o ranger da pena, na sombra,
o luzir da seda das véstias,
à luz de altos caules de cera…
Ninguém vê nenhum livro aberto.
Ninguém vê mão nenhuma erguida,
com fios de ouro sobre o mundo,
para um bordado sem destino,
improvável e incompreensível
remate do fátuo vestido…
Apenas um cacho de rosas,
que nascem pálidas e murchas,
habita um desvão solitário,
quer falar, porque veio a custo
de antigas lágrimas guardadas
num chão sem ouro nem diamantes…
Mas inclina-se à tarde, ao vento,
e como um rosto humano morre,
sem dizer nada, inerme e triste,
ao peso do seu pensamento,
– como acontece entre os amantes.
(de Romanceiro da Inconfidência, 1953)