18.12.11


WILLIAM SHAKESPEARE


Sonnet CXXI

‘Tis better to be vile than vile esteemed,
When not to be receives reproach of being,
And the just pleasure lost which is so deemed
Not by our feeling, but by others’ seeing:
For why should others’ false adulterate eyes
Give salutation to my sportive blood?
Or on my frailties why are frailer spies,
Which in their wills count bad what I think good?
No, I am that I am, and they that level
At my abuses, reckon up their own,
I may be straight, though they themselves be bevel;
By their rank thoughts my deeds must not be shown
     Unless this general evil they maintain,
     All men are bad, and in their badness reign.


CXXI

Antes quero ser vil que mal julgado,
Se, não o sendo, sofro igual censura;
Nunca colhe proveito o difamado,
Senão aos olhos de outra criatura.

E por que insistem olhos tão maldosos
Em afectar este meu sangue ardente?
Não são espiões bem mais pecaminosos
Os que acham mau quanto eu julgo inocente?

Que o achem. Eu sou eu, e em seu conceito,
P'ra mim transferem o seu próprio nível:
Oblíquos podem estar, e eu direito,
Seu mau juízo é, pois, inadmissível,

A menos que esta lei vão implantar:
Ninguém é bom, e o mal há-de reinar.


(tradução de Maria do Céu Saraiva Jorge, in Os Sonetos de Shakespeare, 1962)


SONETO CXXI

Antes ser vil que como vil ser tido,
quando o não ser de ser é suspeitado,
pois que o prazer se perde, imaginado
nos olhos doutrem, não por nós sentido.

Porque há-de dar dos outros o olhar falso
leis a meu sangue, se el' se goza assim?
Porque mais frágeis me andarão no encalço,
a condenar o que me praz a mim?

Ah não, eu sou quem sou. Quem me condena
por meus pecados, pelos seus me acusa:
posso mais recto ser que quanto ordena:
que os feitos meus não valham mente escusa.

Que a menos que se mude tanto mal,
homem não há livre de império tal.


(tradução de Jorge de Sena, in Poesia de 26 séculos, 1978)


CXXI

Bem melhor é ser vil do que por vil havido
quando a quem o não é o sê-lo se censura,
e vemos, como vil, justo prazer perdido
só porque o olhar dos mais — não nós — o desfigura.
Porque há-de agora o falso e turvo olhar alheio
cuidar da salvação deste meu sangue ardente?
E espiar-me as fraquezas quem delas é mais cheio
e teima em dizer mau o que eu julgo excelente?
Pois eu sou o que sou; e eles que denunciam
meus erros, vêem os seus e nisso são exactos.
Sou recto e eles oblíquos; ser nunca poderiam
seus baixos pensamentos medida dos meus actos,
     a menos que mantenham esta geral maldade
     e os homens todos nela governem à vontade.


(tradução de Vasco Graça Moura, in 50 Sonetos de Shakespeare, editorial Presença, 1987)


SONETO CXXI

Mais vale sermos vis que por vis tidos
Quando o não ser do ser leva a censura
E somos do prazer destituídos
P’la imagem que é dos outros, falsa e dura.
Pois como podem outros vir julgar,
De olhos impuros, os que a amor se rendem?
Os meus pecados quem vem espiar,
Incastos que o que é bom por mau entendem?
Não, eu sou o que sou, e os que falam
De abusos meus os próprios denunciam;
Sou vertical lá onde outros abalam.
Juízos tais meus actos desvaliam,
     A menos que a geral maldade eles defendam:
     Os homens são todos maus, e em sendo maus governam.


(tradução de Jorge Miguel Bastos da Silva, in Op. Cit., N.º 3, Associação Portuguesa de Estudos Anglo-Americanos, 2000)


121

Antes ser vil do que por vil havido
Quando o não ser de sê-lo é censurado
E o são prazer se perde, envilecido,
P'lo que sentimos não, no olhar sesgado.
Por que há-de um outro falso olhar venal
Cumpliciar com o meu sangue ardente?
Ou na fraqueza, espião que menos vale,
Turvar, maldoso, o bem da minha mente?
Eu sou quem sou, e esses que me arquivam
Os erros os seus próprios apuram.
Seja eu recto, que de través vivam,
Seus pensares vis meus actos não figuram –
     A menos que este mal seja verdade:
     Ruins, os homens reinam na maldade.


(tradução de Jorge Vilhena Mesquita, in Di Versos 5, Outono-Inverno de 2000-2001)


121.

Mais val' ser vil do que por vil havido,
se a quem não é se acusa por o ser;
por vil se vê justo prazer perdido,
não que o sintamos, mas de alheio ver.
O falso olhar dos outros porque iria
dar salvação a este sangue ardente?
Ou espiar meus fracos fraco espia
que julga mau o que eu julgo excelente?
Não, eu sou o que sou, se denunciam
meus erros, vêem seus próprios desacatos.
Eu recto, eles oblíquos, nem podiam
seus pensamentos vis medir-me os actos,
     a menos que esse mal fique de vez
     e, todos maus, governe a malvadez.


(tradução de Vasco Graça Moura, in Os Sonetos de Shakespeare, 2002)


Soneto 121

Antes ser vil do que vil ser considerado
Quando, mesmo sem sê-lo, esta culpa te imputam
E então perdes um prazer verdadeiro, dado
Que tua alma não, mas os demais condenam.
Então, por que os olhos espúrios dos outros
Hão de julgar meu sangue quente?
Ou espiar minhas fraquezas os mais frouxos
E considerar ruim o que considero um presente?
Não, eu sou o que eu sou; e os preocupados
Com meus desmandos, eles próprios se expõem:
Eu sou franco enquanto eles são dissimulados,
E que seus juízos podres não sujem minhas ações.
A não ser que esta máxima eles mantenham:
Todos os homens são maus e na maldade reinam.


(tradução de Caio Túlio Costa, encontrada aqui)


SONETO 121

Melhor ser mesmo vil que ter a fama.
Se igual censura atinge Ser, Não-ser;
E perder-se o prazer, pois que o difama
Não nosso senso: o alheio parecer.
Por que aos adúlteros olhares calha
De assinalar meu sangue dissoluto?
Por que os mais falhos olham minhas falhas
E dizem mau o que eu tão bem reputo?
Oh, não! Sou como sou, todos aqueles
Que olham meus erros, neles se refletem;
Posso eu ser reto e oblíquos serão eles,
E quando eu faça, a eles não compete.
     Exceto se este mal dão por verdade:
     Que o Homem é mau e reina na maldade.


(tradução de Jorge Wanderley, in William Shakespeare: Sonetos, 1991 – encontrada aqui)

17.12.11


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


PRANTO PELO INFANTE D. PEDRO DAS SETE PARTIDAS
(poema escrito na noite de 17-12-1961, e interrompido pela notícia da entrada dos soldados indianos em Goa)

Nunca choraremos bastante nem com pranto
Assaz amargo e forte
Aquele que fundou glória e grandeza
E recebeu em paga insulto e morte


PRANTO PELO DIA DE HOJE

Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que nem podem sequer ser bem descritas


(de Livro Sexto, 1962)

MANUEL DE FREITAS


TAKI- TALÁ

para o Jorge

Manhã ká tem dia, para
estes corpos que dançaram anos
e derrotas, na fome cantável das ilhas.
Souberam, melhor do que ninguém,
o preço imediato do futuro que
disfarçam, agora mesmo, de alegria.

E rodopiam, pesados, rente
à madeira das paredes e
ao rumor estrangeiro dos eléctricos.
Já não existem, talvez,
as crianças que na fotografia
a preto e branco brincam sem morte
pela praia — pequeno país que os rostos,
as canções e o álcool tornaram
desmedido. B(e)leza adivinhada
no copo que encontra o chão
e gosta, connosco, de cair.

Mas tu, meu amigo, finges destoar
desta música de latas e violas
rombas, mornas cheias da vida
que nos foge. Essa incompreensível
saudade, sodade — de quando não
fomos felizes. Mar à volta, resignado.

E falas, soletras grogue e cerveja.
Convocas demoradamente
os autores franceses que mais leste
— tudo o que procuro esquecer
contigo, num país mais próximo
daquilo a que por vício chamo
às vezes coração, estrela d'nada.

Porque a música, Jorge, é a única
razão que nos sobra. E a ela apenas
bebemos, com um sorriso grande
a perder-se no rosto que passou já

para sempre. À tua.


(de Cretcheu Futebol Clube, Assírio & Alvim, 2006)

16.12.11


LÊDO IVO


ALÉM DO PASSAPORTE

A noite dá a sua lição de universo: as estrêlas caem. Suspensas no ar vazio, elas deslizam no céu negro, fulgem rápidas, desintegram-se. Mas êsses acidentes celestes não exprimem desordem ou fadiga. Estão inscritos na retórica do cosmo, onde tudo é ordem e rigor.

O tempo é uma mentira das êstrelas. Viajante, não sei onde estou, nem mesmo se estou. Na terra desprezada pelo estrondo rouco do jato, as fronteiras voam e os fusos horários zombam da ficção local dos relógios. E, entre o sono e a vigília, contemplo nuvens imensamente brancas no céu escuro, celeiro das estações.

De súbito, surgem debaixo das estrelas as ocasionais constelações terrestres: ilhas criolas, paraísos explosivos que se espraiam, no mar espumoso, como fragmentos de um continente esfarelado.

Banidas as estrelas, a manhã ocupa o céu e o mar. O leve frêmito vertiginoso anuncia que o avião vai descendo de seu abismo às avessas. Plea.se fasten seat. Um farol numa ilha e uma gaivota são os primeiros sinais da Terra. E ambos reiteram ao sol pálido o vigor cansativo dos símbolos.

Desembarco e é outono em Nova Iorque.



OUTONO EM WASHINGTON

Uma chuva de fôlhas douradas
cai e espanta os esquilos de Washington
que não podem catar suas nozes
sem que não sejam incomodados.

Insólito aguaceiro de dólares
atrapalha as pombas que passeiam
entre os sapatos dos intocáveis
e talvez gripados milionários.

O estrondeio dos aviões a jato
estilhaça nos ares de estanho
os direitos civis dos pardais
em vôo do Obelisco ao Potomac.

E o turbilhão de vento e folhagem
crispa a orquídea na loja de fôres
entre o Bank of America e a noite
nos abrigos contra a bomba atômica.

Uma tempestade de corn-flakes
cai sobre as moças em flor que vão
aos psiquiatras perguntar como
lidar com as máquinas do amor.

Chuva de apartes no Capitólio.
Republicanos e democratas
dão ao foguete chamado Apolo
um prazo para chegar à Lua.

Um anjo de goma e pepsi-cola
faz o pedestre apressar a passo
nas avenidas incandescentes
de olhos de vidro inquebrável e aço.

Na poderosa e marmórea Washington
cheia de templos greco-latinos
só a borracha da noite de outono
apaga as garatujas dos homens.



NOVA IORQUE

Como é bela a América, o país das gaivotas!

Do meu quarto de hotel, vejo os arcos do mundo
e as bandeiras de todos os navios.
Môças caminham sòzinhas no dia fluorescente.
A florista negra sorri entre as camélias.


(da secção América, de Estação Central, 2ª edição: edições Orfeu, 1968))

14.12.11


ERICH FRIED


POEMA MILITANTE

Lembro-me
da minha cólera
e da minha procura
das palavras exactas
para a minha cólera
da última correcção
antes de passar a limpo
da leitura em voz alta só para mim
e por fim da minha
satisfação
que veio pôr termo à minha cólera

E permito-me esquecer
como em vão tacteei
para agarrar as folhas brancas
e tive medo
porque os meus dedos
estão a tornar-se mais desajeitados
e porque o papel químico
me caiu ao chão
antes de passar a limpo
e fiquei tonto
quando o apanhei


PERGUNTAS DE UM POETA MILITANTE

De quanto tempo precisarão vocês
para deixarem
de se indignar
com o que eu digo?

E nessa altura ainda cá estarei
para o dizer?
E será útil ainda
que se diga?

Não será então demasiado incompreensível
ou demasiado evidente?
E não repetirei então como uma gralha:
«Foi o que eu sempre disse?»


(de 100 Poemas sem Pátria, tradução deste poema de João Barrento, publicações Dom Quixote, 1979 - Poesia Século XX)

8.12.11


JOÃO RUI DE SOUSA


QUANDO AMANHÃ

Quando amanhã,
na subida mais íngreme daquele monte,
um deus inscrever seu azulado arco
por sobre o fio geral do horizonte
- sobre o esplendor das asas matizadas
pelo calor da lenha a crepitar, pelo fulgor
das cinzas espalhadas rente à terra
como adubo atirado ao amanhecer –
dirás quanto de mim for posse e perda,
sorriso e choro, sabor de doces frutos
ou parca ilusão:

dirás quanto de tudo a vida se revolve,
se incendeia.


RECOMENDAÇÃO

Mergulha e dissolve essas tensões
que pelas tardes cálidas sobrenadam.

Abre valas no tempo e na razão
(a do aturdimento, a do esquecer
as noites de ti próprio) e manuseia
alfaias com todo o desvelo
- transformando em música e palavra
(a voz de ti nascida)
o vasto e árduo esforço de drenagem.

Não deixes que as nuvens por demais
te pesem, por demais assombrem
rios e horizontes e arvoredos - como
cancelas postas no ar da paisagem.


RODA DOS VENTOS

O vento vai e vem, sobe as escadas
do caos e do esplendor
onde as palavras trémulas eram ar
de resistir ao pó e ao ranger das pedras.

O vento acompanha o rufar das folhas
que em transe e rodopio
roçam nos cimos das torres e telhados
ou do frio que habita em cada esquina.

O vento ruge e arde - é uma leve
estátua em movimento ou o irromper
de um estranho arco-íris que transportasse
o sol e as borboletas.

O vento canta em som que é das estrelas,
que é árvore exemplar em cada um
quando roça no ombro uma carícia
de dedos macios - os mais perfeitos.

Também o vento é morte em alto mar
de sombras e bramido e barcas leves,
transformadas em espuma e descalabro
e num estertor final de tábuas soltas.

Também o vento habita nos escombros
a dançar sobre nós como em conquista,
como a varrer a fronte quando a angústia
derrota o ânimo - e o próprio entendimento.

Ó ar que voa em nós em tudo e nada,
entre o fundo dos lodos e as framboesas!
O beijo tão coberto de incerteza!


VÊM DE DENTRO

Vêm de dentro, e sem fim, como as plantas
que ao nascerem ainda não soubessem
a que chuvas se destinam - ou geadas.

E crescem pelos dias, recolhidas na vastidão
dos prados, no som de labaredas inesperadas
e das enxadas que revolvem as margens.

Vêm de dentro, e sós, essas palavras - como
lugares de acaso, como chuvas despenhadas
ao ritmo regular de funda lavra.


(de Quarteto para as próximas chuvas, publicações Dom Quixote, 2008)

6.12.11


LI BAI


Ode à Lua na montanha Emei

A Lua de Outono, em quarto crescente,
       brilha sobre a montanha Emei,
sua claridade pálida cai
       e corre com as águas do rio Ping.
Deixo Qingsi, esta noite,
       rumo às Três Gargantas do Grande Rio.
Passo diante de Yuzhou e penso em vós,
       não fui capaz de vos dizer adeus.


____
[nota do Tradutor:] Considerado há vários séculos um dos mais perfeitos de toda a poesia chinesa, eis um poema de "impossível" tradução. Trata-se de uma despedida, Li Bai aos 26 anos pede desculpa a um amigo por não o haver visitado. As referências geográficas e os topónimos (todos na província de Sichuan), que em chinês cadenciam rima e ritmo, desfiguram o poema, em qualquer outra língua.
A Lua, do alto do céu, observa a Terra inteira e aproxima os amigos ou amantes distantes, basta que ambos, em lugares diferentes, olhem a Lua exactamente a uma mesma hora. Este poema, dada a inexistência de géneros masculino e feminino na língua chinesa, pode ser dedicado não a um amigo mas a uma mulher, transformando-se num poema de amor.




Ode à Lua na montanha Emei
(desenho de autor desconhecido para um poema de Li Bai)


(in Poemas de Li Bai, tradução, prefácio e notas de António Graça de Abreu, Instituto Cultural de Macau, 1990)

5.12.11


JOÃO MIGUEL HENRIQUES


OS BICHOS

os bichos comem a terra suja da estação
e as plantas que crescem no quintal da frente.
crescem por entre cardos e ramos secos
e os bichos engolem os cardos por todo o lado.
os homens comem os bichos cheios de feridas,
da cabeça até ao osso.
nos dias de sementeira andam curvados
por todo o quintal da frente.
comem os bichos que se aventuram demasiado
e plantam cardos novos, gordos de sangue.
à noite ajudam com vinho grande
a digestão de bichos cheios de cardos.


(de O Sopro da Tartaruga, edição do Autor, 2005)


Um pedido (a ordem das coisas sobre a terra)

esta é a ordem das coisas sobre a terra, se não me engano,
esta a disposição dos espaços volumosos,
assim é, como é sabido, a natural sucessão das jornadas e
este o ritmo absurdo (certificado) do outono e do estio

não deixes que a tua ousadia voraz
roube ao dia a ordenação pesarosa,
que tem sucedido ruírem cidades
desabarem casas e templos
por transgressões bem mais pequenas


(de também a memória é algum conhecimento, Lumme editor, 2009


Continente

já certas nuvens são países
e a abóbada inteira
um continente incerto

de vales
e promontórios
tudo reflectido numa poça de luz baça
em difusa governação de fronteiras

há-de o céu um dia
tornar-se terra revolta
desordenada
derradeira


(de Entulho, O Arqueiro Verde, 2010)

4.12.11

RENÉ MAGRITTE


La reproduction interdite, 1937

óleo sobre tela

Museum Boijmans Van Beuningen, Rotterdam



EMANUEL JORGE BOTELHO


s/ «LA REPRODUCTION INTERDITE»
de René Magritte


nos olhos
a sede em lágrima, oculta

um sudário em asterisco,
de vinagre


(de Perguntas Queimadas, edições Bumerangue, 1996 - colecção guarda-rios)

3.12.11


m. parissy


as páginas soltas

para alen ginsberg

desculpa
ter as páginas soltas do teu livro howl and other poems

eu atravessei o inferno sob o céu de alguns amigos
que flutuavam ao som dos doors

conduzi muitas vezes o fiat 126
até ao vale furado praia do norte e falca
para libertar das cordas vocais
o impulso rítmico dos versos

as capas dos livros escolares
ainda estão cheias de poemas americanos
eram cábulas que me ajudavam a regressar ao fogo
a liberdade existia nesses embrulhos

tinha amigos com quem apanhava figos
e fumava charros nas ervinhas
o sítio onde hoje existem prédios
altos prédios civilizacionais
e esperava que durante as aulas me pedissem
para ler o resto do rodapé ao poema howl
todos se riam quando terminava o verso
...a língua e o sexo e a mão e o olho do eu são sagrados!

caminhava pelas brasas do inferno
e divertia-me e bebia cerveja às escondidas
passava noites inteiras no sótão das minhas primas
a ouvir led zeppelin
e a fazer de guarda

eu queria era ver
o joão grilo e o pássar'da névoa
a surfarem com mares à pinoca

fui espreitar lawrence ferlinghetti
quando o zé carlos e o rui o levaram à praia

fui ouvir o jorge palma a cantar
de guitarra nas mãos e pés descalços
frente à capitania

fui bisbilhotar as conversas
do rui veloso e do cavalheiro e do silvino e dos borda d'água
quando fumavam um grande cachimbo ao pé da bola de nívea

eu também fumava cachimbos com o russo e libânio
lá ao sul em frente aos estaleiros
e depois ia arranjar redes e encher agulhas
com o meu avô asa negra

fui ao pére-lachaise
e depositei o corpo indómito
na campa de james douglas morrison
e deixei um cigarro aceso enfiado na areia
que cobre paul éluard

vendi tudo:
o corpo a trabalhar
nas casas de banho do parque de campismo de albufeira
para comprar pão e leite

a assar peixe num restaurante
para depois me deixarem comer
os restos dos almoços e dos jantares

dormi na praia
e às cinco da manhã ajudava os pescadores
a pôr as lanchas n'água

vendi a alma
porque conhecia alguém justo
que caminhava estrada fora

obrigaram-me a ter bilhete de identidade
e conta bancária
e médico próprio
e a assinar o nome
em todos os papéis que me punham à frente
as instituições do bem social

queria não ser o filho da puta que sou
igual aos outros
industrial robot
convertido a toda a merda que me vendem

eu que só disse uma asneira aos doze anos
e porque os amigos da escola me obrigaram

desculpa lá pá
desculpa ter algumas folhas soltas do livro

sabes que aqui os livros das bibliotecas
ganham bolor
ficam húmidos
e ninguém se rala

tive de roubar o howl senão apodrecia
desculpa tá bem?


(de cafurnas, edição do Autor, 2002)

30.11.11


VICENTE ALEIXANDRE


QUERO SABER

Diz-me depressa o segredo da tua vida;
quero saber porque a pedra não é pluma,
nem o coração uma frágil árvore,
nem porque essa criança que morre entre duas veias-rios
não parte para o mar como todos os barcos.

Quero saber se o coração é uma chuva ou orla,
o que fica de lado quando dois se sorriem,
ou se é apenas a fronteira entre duas jovens mãos
que cingem uma pele ardente e imutável.

Flor, risco ou dúvida, ou sede ou sol ou látego.
O mundo inteiro e único, a ribeira e a pálpebra,
esse dourado pássaro que dorme entre os lábios
quando a alba penetra no dia lentamente.

Quero saber se uma ponte é ferro ou é desejo,
esse esforço para unir duas carnes íntimas,
essa separação dos peitos atingidos
por uma flecha nova surgida dentre a folhagem.

Musgo ou lua são o mesmo, o que a ninguém surpreende,
essa lenta carícia que de noite os corpos
percorre como uma pluma ou lábios que agora chovem.
Quero saber se o rio se afasta de si mesmo
cingindo as formas em silêncio,
cataratas de corpos que se amam como espuma,
até desembocarem no mar como o prazer consentido.

Os gritos são chibatas, eriçados espinhos,
vivo desespero de ver os curtos braços
erguidos para o céu suplicando à lua,
doloridas cabeças que no alto dormem, vogam,
sem respirar sequer como lâminas turvas.

Quero saber se a noite vê em baixo
brancos corpos de tela estendidos na terra,
falsas rochas, papelões, fios, pele, água parada,
pássaros como lâminas cravadas no chão,
ou ruídos de ferro, floresta virgem do homem.

Quero saber, altura, mar vago ou infinito,
se o mar é essa oculta dúvida que me embriaga
quando o vento trespassa transparentes crespões,
sombra, pesos, marfins, longas tempestades,
o esquálido cativo além invisível debatendo-se,
ou matilha de doces armadilhas.


(de A Destruição ou o Amor, tradução de Luís Pignatelli, publicações Dom Quixote, 1977 – poesia século XX)

29.11.11

GUILLEVIC


COISAS

Pratos de faiança, usados,
De onde o branco se escapa,
Viestes novos
Para nossa casa.

Aprendemos imenso
Desde esse tempo.


SUBÚRBIO

A custo de pé se mantêm os muros 
Ao longo desta rua
Íngreme, cheia de curvas.

Dir-se-ia que vieram todos, os do bairro,
Enxugar as mãos gordurosas no rebordo das janelas,
Antes de em conjunto penetrarem na festa
Onde parecia cumprir-se o seu destino.

Vê-se um comboio a arrastar-se por cima da rua,
Vêem-se luzes a acender-se,
Vêem-se quartos sem espaço.

Por vezes uma criança chora
Na direcção do futuro.


ELEGIA

Bebemos às escondidas
Em copos intactos
Vinho que talvez
Fosse para nós.

Bebemos às escondidas
Por entre as turbas
Que se moviam para o sol.

Era à saída dos nossos labirintos
E faltava-nos firmeza nas mãos.

As delícias do azul reservavam-se para a colina,
O cimo das árvores
E o ocioso gavião.

Tivemos a nossa hora e julgámos possível
Proteger as planícies e o próprio espaço.

Amámos às escondidas
E soubemos que não pode curar-se
Em pouco tempo alegria excessiva.


(in Poesias, tradução de David Mourão-Ferreira, editora Ulisseia, 1965 - originais de Terraqué, 1942)

28.11.11


JOSÉ BLANC DE PORTUGAL


Alfarrobeira

Parece que é uma alfarrobeira
Esta árvore
— E'inda p'ra mais florida! —
Por onde passo pelo menos cada dia quatro vezes.

Parece, mas não sei!
E, todavia...
Persisto em julgar-me um ser da natureza
Tão ou mais do que essa maravilha de enflorados troncos.

Não sei...
E não há todavias realmente a opor...
A palavra comum,
A mim,
À terra que a sustenta,
Ao ar que a estremece,
A essa, digamos, tal alfarrobeira,
E' o viver por e para tudo isso
                 e para mim também
Que tanto vivo para esse tronco enflorado
Como para em palavras,
Tão como ele cifradas,
Pôr imagens informes do real oculto.

1967


Úlcera crítica

Todos querem ser o que não são
E eu à regra não faço excepção.
           Se acontece que mil vezes mudo
           É só por querer depressa ser tudo.
           Tudo, entendamos, exclui meio milheiro...
           Em especial: académico e banqueiro.
           Um porque sabe a mais o que é de menos;
           O outro sofre muito se os lucros são pequenos. 
Ambos, porque sim e porque não, 
Esses querem bem ser o que são...

Admiro até, porém, as linhas rectas,
Mas a geometria é, realmente, coisa de poetas
           Que eu entorto em letras p'ra fazer um dístico 
           Capaz de fazer passar até por aforístico.
Mas sem sorte alguma:
Puras agulhas de pinheiro, simples caruma, 
           Seca como as rectas da geometria 
           — A grande irmã secreta da poesia
Que faz as úlceras dos críticos
Em seus comentários analíticos...

1967

 
O Tempo e a Liberdade

Fosse meu o tempo e ele, por certo, Não seria assim:
Roubava-o na medida, evidentemente
A favor de mim.

O Tempo disse-me então:
— Por minha culpa não serás ladrão;
Dou-me como me quiseres gastar;
Perde-me à vontade.
Mas escusas de ir gritando empestando o ar:
«E onde fica a minha Liberdade?!»

1967


(in Ocidente - Revista Portuguesa de Cultura, N.º 414 / Outubro, 1972)

4.11.11

ÓSSIP MANDELSTAM


Não te seduzam alheios idiomas, esquecê-los é bom que tentes:
seja como for não poderás morder o vidro com os dentes.

Com que sofrimento se domina o voo do crocitar alheio —
pelo êxtase ilegítimo, que dura paga te espera.

Porque o nome alheio à hora da morte não vai salvar
o corpo moribundo e a boca pensante e imortal.

E se os encantadores Ariosto e Tasso, que nos seduzem,
são monstros com escamas de olhos húmidos e cérebro azul?

E, amante de sons, castigando-te a vaidade,
vai passar-te pelos lábios a esponja de vinagre.

Maio de 1933


(in Fogo Errante - antologia poética, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Relógio d'Água, 2001)

3.11.11


VASCO MIRANDA


RECUSA
a Alberto de Serpa
Serei sempre um poeta provinciano.
Um poeta triste, esquivo,
Com medo de apertar a mão aos poetas da cidade
E de me sentar com eles
À mesa do Café.
Não falarei de minha poesia.
Não rimarei minha angústia
Com a solenidade de suas questões.
A poesia não está na discussão.
A poesia não está no não estar com este ou com aquele.
A poesia está em matar esta morte
Que anda dentro de nós
Para que a vida renasça.
A poesia está em gritar do alto dos arranha-céus
E das planuras e concavidades sertanejas
Que o mundo vai acabar
Que o mundo está maduro para o sangue
Que o mundo perverso e caótico vai vagar.
Serei sempre um poeta provinciano.
Um poeta esquivo defendendo sua solidão
De todos os truques de todos os ódios de todas as invejas.
Os poetas rendilheiros não perdoarão.
Os poetas vaidosos vão barafustar
E exigir a expulsão imediata
Do último vendilhão do Templo,
Em nome da religião,
Em nome da estética,
Em nome da dignidade amarfanhada,
Em nome da polícia se preciso for.
Serei sempre um poeta provinciano.
Um poeta esquivo anunciando a verdade
A repassar de gelo os corações narcotizados.
Os poetas rendilheiros não perdoarão.
Os poetas vaidosos vão barafustar,
Porque o fim do mundo está próximo.
Os poetas rendilheiros e os poetas vaidosos estão maduros para o sangue.
Já estão cevados para a morte.
Eles esquecem (perdão, não é blasfémia!) a sentença do Cristo:
— «Destruí este Templo e eu o reedificarei em três dias.»


(de A Vida Suspensa, 1953)

2.11.11

EMANUEL FÉLIX


«BUSCAR A LUZ DO DIA, VIVER DEPOIS DA MORTE» (*)

Eu te saúdo
A ti que te ergues sobre os abismos cósmicos
Imenso é na verdade o teu esplendor
Surges como um leão de duas cabeças
Deixa ouvir a tua mensagem poderosa
Cede a tua força aos que te aguardam de pé teimosamente

Eis que acabamos de chegar e nos misturamos
À multidão dos deuses que gravitam
Em teu redor oh sol
E logo cumprimos as ordens a que obedecem os teus servidores
Semeamos os campos
Tiramos água dos poços
Carregamos areia de leste para oeste
E na verdade como tu vivemos depois da morte
Do mesmo modo que todos os dias renasces da noite

E todos os que nos amam rejubilam 
Ao saberem-nos vivos

______
(*) Livro dos Mortos dos Antigos Egípcios


(de O Instante Suspenso, 1992)

1.11.11

[em dia de todos os santos]

LEONARD COHEN


NA BÍBLIA GERAÇÕES  PASSAM...

Na Bíblia gerações passam num parágrafo, uma traição expõe-se numa frase, a criação do mundo ocupa uma página. Entre uma multidão, nunca pude distinguir a dinastia importante, vocês devem ter a fronte iluminada para poderem ver na teia emaranhada das evidências diárias as negativas e as lealdades. Quem pode assinalar a oliveira que a história escolhe para dar sombra aos seus amantes? Que árvore do grandioso pomar poderá oferecer a visão particular da folhagem e do céu para desencadear os seus beijos? Apenas duas pessoas iluminadas que vão directamente às raízes em que repousam. Pela minha parte limito-me a descrever o pomar inteiro.


(in Antologia Poética, versões de Jorge Sousa Braga e Carlos Tê, 2ª ed.: Assírio & Alvim, 1997 - Rei Lagarto)


31.10.11


ALBERTO DE LACERDA


García Lorca e o poema como superfície plana

Lorca continua a ser obscurecido pelo prestígio do pitoresco que primeiro impôs a sua obra. Não há nenhum crime em ser pitoresco; o problema é que nenhum poeta atingiu a grandeza só através do pitoresco.
Há muito admirador inteligente de Lorca que o vê demasiado à luz do seu espanholismo, do seu charme andaluz, esquecendo outros aspectos. Esse espanholismo existe, esse charme andaluz é inegável. Mas a contrapor ao luxo das imagens, à exuberância de cor, ao sortilégio rítmico, eu queria salientar um Lorca que trabalhou a linguagem com mãos depuradas, quase ascéticas.
PRIMERA PAGINA 
Fuente clara.
Cielo claro.
¡Oh, como se agrandan
los pájaros!
Cielo claro.
Fuente clara.
¡Oh, como relumbran
las naranjas!
Fuente.
Cielo.
¡Oh, como el trigo
es tierno!
Cielo.
Fuente.
¡Oh, como el trigo
es verde!
Céu, fonte, pássaros, laranjas, trigo: o poema cresce à volta destes substantivos, quase que consiste exclusivamente dessas palavras. Só tem três adjectivos: claro, no masculino e feminino, tierno e verde.
E é um poema prodigioso, pela força de presença, e não – repare-se – pela evocação. Devido à tensão imagística, que é desconcertante (pois são palavras isoladas que se tornam imagens), o poema é-nos apresentado como uma superfície plana, chata – tela ou parede, e não espelho, muito menos mar, ou rio, superfícies moventes, rumorosas. Esta energia horizontal trata as palavras como blocos, atendendo mais à sua densidade do que à sua transparência. Não se trata de poesia plástica no sentido superficial e perigosamente impreciso em que a expressão tem sido usada. Não se trata de transposição pictórica. O poema acontece na própria tessitura rítmica, vai acontecendo palavra por palavra aos nossos olhos. Um acontecer não gradual: lêem-se poemas deste tipo plano como quem lê um quadro. Dizem, mas não contam. Nem há metamorfose.
CAZADOR
¡Alto pinar!
Cuatro palomas por el aire van.
Cuatro palomas
vuelan y tornan.
Llevan heridas
sus cuatro sombras.
¡Bajo pinar!
Cuatro palomas en la tierra están.
O poema torna presente, de forma instantânea, algo que só pode existir em situação poemática e desdobrada: biombo não-narrativo. As quatro pombas, o ar, a terra, são objectos que só têm vida própria no poema, enquanto o lemos. São unidades concretas dum edifício que acaba por ser abstracto. Tal poema não é edifício simbólico. O poeta fundiu-se de tal forma com as palavras que as fez explodir de dentro. Eu ia a dizer: passam a ser outra coisa. Mas não é bem isso. O processo é mais subtil, mais panicamente sensual: passam a ser o acto de ler o poema. Mais do que em qualquer outro poeta, cada poema de Lorca é um ritual. Ritual tem milenariamente a ver com teatro, teatro sagrado, mas é um disparate dizer que Lorca foi sobretudo dramático ou sobretudo lírico. Foi as duas coisas.
Dirão que é perversa a minha escolha de poemas. Mas vejamos como este processo verbal também funciona em passagens do livro mais célebre de Lorca, o mais carregado de espanholismos: Romancero Gitano. Repare-se nas superfícies planas sobrepostas:
Verde que te quiero verde.
Verde viento. Verdes ramas.
El barco sobre la mar
y el caballo en la montaña.
O aparente non-sequitur visual não tem raiz nem intenção onírica. Estes versos são alheios a qualquer noção, voluntária ou involuntária, de profundidade ou de subterrâneo psicológico. Mas o resultado é mágico. Magia das superfícies sagradas, sobretudo a pele e a terra (com as suas águas), que as sabia sagradas, como pagão que era, Federico García Lorca, um dos poetas mais soberanamente pagãos de todos os tempos.
A sua intuição de tradições antiquíssimas, menos perdidas (felizmente) do que se crê, o aspecto inédito que ele dá à possessa vivência dessas tradições têm um paralelo na pintura espanhola: Miro. Joan Miró, eivado da alegria grave dos iluminados, é o homem do insólito fabuloso, da lava enigmática de vulcões pré-cristãos. Lava sem as hesitações mórbidas do século, lava exaltada e exultante, de quem habita naturalmente o mistério e o maravilhoso, sem perguntar nem responder (acusa, às vezes, e Lorca também: outra história, outro capítulo). Lorca e Miró são surrealistas no arcaico; «no Antiguo», diria Almada, carregando muito as últimas vogais. Mas Miro não pinta símbolos. Entre Miró e a pintura não há intermediários. Entre o divino Lorca e a poesia não há nenhum intermediário. Nenhum mal-entendido.

Boston, Julho de 1973.


(in Colóquio Letras, número 16 - Novembro de 1973)

29.10.11


JOÃO CABRAL DE MELO NETO


«THE COUNTRY OF THE HOUYHNHNMS»
(outra composição)

Para falar dos Yahoos, se necessita
que as palavras funcionem de pedra:
se pronunciadas, que se pronunciem
com a bôca para pronunciar pedras;
se escritas, se escrevam em duro
na página dura de um muro de pedra;
e mais que pronunciadas ou escritas,
que se atirem, como se atiram pedras.
Para falar dos Yahoos, se necessita
que as palavras se rearmem de gume,
como numa sátira; ou como na ironia,
se armem ambiguamente de dois gumes;
e que a frase se arme do perfurante
que têm no Pajeú as facas-de-ponta:
faca sem dois gumes e contudo ambígua,
por não ver onde nela não é ponta.


2.
Ou para quando falarem dos Yahoos:
não querer ouvir quando falar, pelo menos;
ou ouvir, mas engatilhando o sorriso,
para dispará-lo, a qualquer momento.
Aviar e ativar, debaixo do silêncio,
o cacto que dorme em qualquer não;
ativar no silêncio os cem espinhos
com que pode despertar o cacto não.


(de A Educação pela Pedra, 1965)


JONATHAN SWIFT

[…]
O cavalo-chefe ordenou a um garrano alazão, um dos seus criados, que desamarrasse o maior daqueles animais e o levasse para o pátio. A besta e eu fomos colocados frente a frente e as nossas caras cuidadosamente comparadas, tanto pelo chefe como pelo criado, enquanto repetiam várias vezes a palavra «Yahoo». São indescritíveis o horror e o espanto que senti ao reconhecer naquele abominável animal um perfeito homem. A sua cara era, de facto, achatada e larga, o nariz baixo, os lábios grossos e a boca desmedida. Estas características são, porém, comuns a todos os nativos das nações mais atrasadas, em que logo de pequeninos os traços da cara são deformados, quer por andarem de rojo pelo chão, quer por irem esborrachando a cara de encontro às costas da mãe, quando esta aí os leva. As patas dianteiras do yahoo distinguiam-se das minhas mãos apenas pelo comprimento das unhas, a aspereza e tom acastanhado das palmas e os pêlos nas costas. O mesmo valia para os nossos pés, o que os cavalos não puderam apreciar por causa do meu calçado. Essa mesma semelhança estendia-se a todo o resto do corpo, com excepção do adorno, capilar e da cor, como já descrevi.
O que mais embaraçava os dois cavalos era encontrar o meu corpo tão diferente do do yahoo, o que eu devia às minhas roupas, que eles, por desconhecimento, tomavam como parte integrante do meu corpo. O garrano alazão ofereceu-me uma raiz, que ele segurava (como lhes era próprio e eu descreverei na devida ocasião) entre o casco e a quartela. Peguei-lhe e, depois de a cheirar, devolvi-lha tão cortesmente quanto me foi possível. Trouxe, em seguida, do estábulo do yahoo um bocado de carne de burro, que eu recusei com repugnância, tão mal cheirava. Atirou-o, então, para o yahoo, que lhe saltou em cima e imediatamente o devorou. Ofereceu-me depois um molho de feno e um punhado de aveia, mas abanei com a cabeça, mostrando que nada daquilo me servia como alimento. Nessa altura convenci-me que morreria de fome, caso não viesse a encontrar alguém da minha espécie. Quanto àqueles imundos yahoos, não podia contar com eles, e, apesar de nutrir, como poucos na altura, grande amor pela humanidade, confesso nunca ter visto ser sensitivo mais detestável em todos os aspectos; e quanto mais os ia conhecendo, durante a minha permanência naquele país, mais repugnantes me pareciam. Adivinhando, pelo meu comportamento, tal aversão, o cavalo-chefe mandou recolher o yahoo. Levou, então, uma das suas mãos à boca, num movimento perfeitamente natural e executado com tal facilidade que me surpreendeu sobremaneira, com o que, juntamente com outros sinais, me dava a entender que não sabia o que havia eu de comer. Era-me, porém, impossível responder-lhe de maneira a fazer-me compreender; e, mesmo que me compreendesse, não via onde ele iria encontrar comida para mim. Passou nessa altura por nós uma vaca, e, apontando para ela, fiz menção de a ir ordenhar, pelo que ele me conduziu de novo para dentro de casa e, ordenando a uma égua que abrisse um quarto, me pôs perante uma abundante provisão de leite, contido em vasilhas de barro e madeira, numa ordem e asseio exemplares. A égua deu-me a beber uma tigela cheia, que eu bebi com gosto, sentindo um conforto imediato.
[…]


(excerto de As Viagens de Gulliver, tradução de Maria Francisca Ferreira de Lima, Biblioteca Visão, 2000)

26.10.11

CESAR VALLEJO


LXXVII

Graniza tanto, como para que eu recorde
e aumente as pérolas
que recolhi mesmo do focinho
de cada tempestade.

Esta chuva não se vai secar.
A não ser que eu pudesse
cair agora para ela, ou que me enterrassem
molhado na água
que jorrasse de todos os fogos.

Até onde me apanhará esta chuva?
Receio ficar com algum flanco seco;
temo que ela se afaste, sem me ter provado
nas secas de incríveis cordas vocais,
por onde,
para dar harmonia,
há sempre que subir, nunca descer!
Porventura não subimos para baixo?

Mesmo na praia sem mar, oh chuva, canta!


(in Antologia, selecção, tradução e prólogo de José Bento, Limiar, 1981 – Os Olhos e a Memória / original de Trilce, 1922)

25.10.11


RABINADRANATH TAGORE


O CAMINHANTE

Não me perguntes
O que é salvação
Ou onde a encontrar,
Não sou investigador, mas apenas poeta...
Vivo agarrado a esta terra.
Perante mim corre o rio da vida...
Levando na sua corrente
Luz e sombra, bem e mal,
Ganhos e perdas, lágrimas e risos,
Coisas que se entrelaçam
E se esquecem!
Sobre as suas águas
A manhã chega em profundos matizes,
O ocaso estende o seu véu carmesim,
E os raios lunares caem como o suave tacto de uma mãe.
Na noite escura
As estrelas elevam as suas orações;
Sobre as suas ondas
A madhuri oferece os seus dons,
E as aves soltam os seus cantos.
Quando ao ritmo das ondas
Silencioso dança o meu coração
Então nesse ritmo
Estão os meus limites e a minha liberdade.
Não desejo conservar nada
Nem apegar-me a nada.
Desatando os nós da união e da separação,
Quero flutuar com o Todo
Içando as minhas velas ao vento que paira.

Oh, grande Caminhante!
Para ti abrem-se os dez caminhos
Nos confins da terra,
E não tens templo, nem céu,
Nem limite final.
A cada passo tocas o chão sagrado.
Caminhando a teu lado, oh, Incansável!
Encontro a salvação
No tesouro do caminho.
Em luz e sombra,
Nas páginas sempre novas da criação,
Em cada novo instante de dissolução
Ouve-se o ritmo das tuas danças e canções.


(in Poesia, tradução de José Agostinho Baptista, Assírio & Alvim, 2004 – documenta poetica

24.10.11

LUIZ RUFFATO


À mesa tomam assento os eleitos,
alvas toalhas, asseada comida.
Bebem, conversam, enfastiam-se.
Ao relento, observamos, além
da janela. Sendas inúmeras
de mãos dadas percorremos,
vasta solidão. às nossas costas,
quanta ruína! Putrefazem-se
os mortos sob os monturos,
faz fortuna a peste. E a nós
nos foi dado os sinais aguardar.


(de As Máscaras Singulares, Boitempo editorial, 2002)

13.10.11

JOAN MIRÓ



Le soleil rouge ronge l'araignée, 1948
óleo sobre tela
Nahmad Collection, Suiça

RAUL DE CARVALHO


(Joan Miró, Le soleil rouge ronge l'araignée)


Foi Deus que me disse
que existe uma aranha
que existe o sol
que existe um pintor
e que Deus deu a alma a esse pintor
para que ele com estes quatro elementos
a aranha o sol e a vontade de Deus
pudesse fazer com uma teia de aranha
uma constelação
semear dentro dela
sementes de alegria
a alegria que está nascendo
no sol na aranha na alma nos olhos

Foi Deus que me disse
que a alegria tem olhos!

Constantemente me salvo!
Mas é sempre à minha custa

Fico sempre com um pouco
mais de sombra no olhar

Quando julgo que chegou
enfim a minha vez

Ouvir um coração a bater
é o bastante para

Saltar ao eixo apanhar amoras
acreditar que em minhas mãos
o suor é mais brilhante do que o sol

E dizer-te —
Amor o teu sorriso
neste momento é eterno!


(de Mesa da Solidão, 1955)