15.7.03

POESIA E BLOGS (I)

PEDRO MEXIA

Nasceu em 1972
Até agora: começou (e terá acabado?) a tirar um curso de Direito; foi activista do DNJovem; fez livros a brincar; fez livros a sério (6: 4 de poesia sua e 2 compilando poesia de outros - todos muito bons...); teve um blog, com mais gente e agora tem um blog sozinho, o Dicionário do Diabo.
Além disso, fico a saber que, apesar de ter uma coluna no Diário de Notícias e de, quer como poeta, quer como crítico literário ser dos mais elogiados da sua idade não é nada conhecido (eu é que devo andar distraído...).

[o que se segue são poemas soltos, mas cada livro de Mexia organiza-se numa estrutura própria, pelo que aconselho a sua leitura por inteiro]

OS VASOS PARTIDOS

Este vaso partido já não tem dentro
e fora, já não contém, não limita,
não transborda. A causa deste vaso
e o seu destino confundem-se
nos estilhaços de uma história
há muito escrita. Dentro do vaso
houve génio, memória, uma geração
intemporal, mas nas suas ruínas
apenas um espírito que nos abandona.

TRÊS TEORIAS

As nuvens desenham figuras.
O céu em volta das nuvens desenha figuras.
Os olhos desenham sempre figuras no céu.

(de Duplo Império, 1999)

TODOS CONTRA TODOS

A infância é uma arena de jogos
e todos, rotativamente,
éramos adversários
as regras fixas, o propósito curto,
a disposição honesta.

Aldeia de irmãos, tínhamos do nosso lado
o far-west, partíamos canteiros
com sardinheiras e, como alquimistas,
fazíamos um ouro secreto
apenas para nosso uso.

Na adolescência,
dissemos, mudavam as tácticas
e as intenções mas não
as regras. Mas a adolescência
acabou, os jogos são formas
de vingança e agora
jogamos todos contra todos.

(de Em Memória, Gótica, 2000)

APRENDIZAGEM
(decalque de e. e. cummings)


o eclesiastes disse-

-lhe:ele não podia
acreditar (nietzche

disse-lhe;ele
não queria acreditar
nisso)cesare

pavese
certamente disse-
-lhe,e jacques
(sim

senhora)
brel
e até
(acredite
ou
não)você
lhe disse: eu disse-
-lhe;nós dissemos-lhe
(ele não acreditou, não
senhor)foi preciso
que o céu lhe caísse
muito justa-

mente
em cima da cabeça:para dizer-

-lhe

[n. do a.: “a partir da versão portuguesa do poema ‘plato told’ por Jorge Fazenda Lourenço”]

(de Avalanche, edições Quasi, 2001)

LEITURAS OBRIGATÓRIAS

Vê-se o castelo, vou poetando trivialidades
no caderno, à minha frente a rapariga estuda o Livro
do Desassossego
,
eu estou sossegado e estudo a rapariga,
não realmente bonita mas
de íris inquisidoras e surpreendente
decerto entre quatro paredes.

Se eu fosse algum dia um poeta
seria uma obrigação curricular para os vindouros,
versos a acompanhar cigarros e namoros,
o livro com manchas de café, uma rapariga (filha desta?)
a ler o que hoje escrevi no Chiado
e alguém noutra mesa a fazer
um poema acerca disso.

AVÓS

Há avós que pedem, enrodilhados, no metro,
apertamos os sobretudos, criminosos felizes.

NEO-REALISMO

Fotografias de baptizados, férias
de verão, a quem interessa tal,
presentes, missangas, uma ruga
a mais, projectos para mais
tarde, uma tareia infantil,
cremes, pensamento positivo, a quase
queca de ontem à noite. Isto
as empregadas de balcão, entre
um e outro e outro pedido
de clientes esfomeados e estúpidos.

(de Eliot e Outras Observações, Gótica, 2003)

[P. M. tem ainda 2 poemas no livro colectivo Dez, de 1995, organizou uma Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa em 1997, editada pela O Contador de Histórias e a CM de Tomar e as edições Quasi anunciam Vida Oculta]

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