[por uma adesão do Senegal à CPLP]
LÉOPOLD SENGHOR
ELEGIA DAS SAUDADES
A Humberto Luís Barahona de Lemos
Ouço no mais íntimo de mim o
canto de voz umbrosa das saudades.
Será a voz antiga, a gota de
sangue português que ascende do fundo dos tempos?
O meu nome que remonta às
suas fontes?
Gota de sangue ou então Senhor,
a alcunha que um capitão pôs outrora a um bom de um marujo?
Reencontrei meu sangue,
descobri meu nome o ano passado em Coimbra, em plena selva dos livros.
Mundo selado de caracteres
estritos e misteriosos, ó noite das florestas verdes, alva das plagas
inauditas!
Bebi — muros brancos colinas
de oliveiras — todo um mundo de proezas de aventuras de violentos amores de ciclones.
Ah! beber todos os rios: o
Niger o Congo e o Zambeze, o Amazonas e o Ganges
Beber todos os mares de um
só trago, traço negro sem cesura não sem acentos
E os sonhos todos beber
todos os livros todo o oiro, os prodígios todos de Coimbra.
Recordar, recordar apenas...
Cameleiro moiro, eis-te pois
alçado à minha altura — nesse século de brio
Guerreiro, à altura da minha
coragem.
À tua manha oblíqua opor a
rectidão da minha lança — que desfere o raio como um veneno
À tua manha, o
meu ímpeto sem costura.
Capitão ou
marujo, já me não recordo, eu restauro a força dos meus fortes
A sua
submissão mais dura do que os muros. Tenho ódio à desordem.
A minha missão
é pascer os rebanhos
Tirar a
desforra e submeter o deserto ao Deus da fecundidade.
Foi no século
da honra.
Bela era a
batalha, vermelho o sangue ausente o medo.
À sombra
destas dunas, cantam as saudades de minhas glórias idas.
Um dia em Lagos
oferta ao mar como a outra Lagos.
Não um rio mas
mil rios, não uma lagoa mil lagoas
Um só e único
mar com quatro distâncias.
Nenhum
paletúvio: uma floresta no dilúvio, sobre a vasa fervilhante de répteis do
Terceiro Dia
E no meio das
aves-trombetas, macacos com seus gritos de címbalo, uma ascensão de odores
mortais
E de outros,
suaves como oboés.
Reinava o
Terceiro Dia, e a vida corria bem.
Milhões de
homens como formigas carnívoras, à corrida pelas pistas do desejo, e mulheres
jazentes
Ébrias de
sémen de espasmos, ébrias de vinho de palma.
Percebi os
signos da Tribo.
O Amor: a
morte, e com que exultação! A Morte: o renascimento cortado de raios.
Saudades dos amores antigos, saudades das
minhas saudades
Do enorme
vácuo vermelho da Imerina.
Ah! eu confundo
eu confundo, confundo presente e passado.
Um serão houve
em honra do Hóspede, em casa do Senhor dos Altos Planaltos
No meio de
velas seda de cabelos, o veludo vivo das vozes o oiro dos braços de âmbar
Ao jorrar do
longo queixume da orquestra
E do coro à
sua volta. Acaso já ouvistes esses cantos dos Altos Planaltos, que cantam um
mundo defunto
Em que a
paixão é pura, impossíveis os amores, os corações abismos de vertigem?
Morrer morrer,
morrer de um queixume incomensurável
Oh! morrer de
um longo queixume que de súbito se nos abisma no coração.
Nada mais há,
nada além do enorme e negro vácuo da Imerina.
Sangram ao
longe as montanhas, como fogueiras no mato.
Perdido no
oceano Pacífico, eu abordo a Ilha Ditosa — meu coração é sempre errante, o mar
ilimitado.
Brancas asas
de arcanjo têm os tubarões, as serpentes destilam êxtase, e os seixos...
Mulheres que
são mulheres, mulheres que são frutos, e sem caroço: mulheres-sésamo.
Na escuridão
dos cabelos, flores que são linguagem de Iniciados.
Trago um colar
de corais, ofereço-o a quatro flores.
— Não sou livre
de amar, terás que voltar amanhã de madrugada.
— A minha
corola está aberta, meu mais-que-irmão, ao meu belo Príncipe-Abelha. Abstenham-se
sobretudo as borboletas.
— São vãs as
tuas armas meu irmão — quão ridículo é o Guerreiro!
— Morro e
renasço como quero. O meu amor é milagre.
Era muito
longe no tempo e no espaço, e era o mar pacífico.
Não falarei em
feitos nem em reinos conquistados aos índios de ambos os horizontes.
Quantas
aventuras bebidas na nascente dos rios sagrados!
Mas não tenho
gosto pela magia, o Amor é a minha maravilha.
Meu sangue
português perdeu-se no mar da minha Negritude.
Amália
Rodrigues, canta ó canta em tua voz baixa as saudades dos meus amores
antigos
Dos rios das
florestas das velas, dos oceanos das praias do sol
E os golpes
desferidos e o sangue derramado por tanta coisa fútil.
Ouço no mais
íntimo de mim a plangente voz de sombra das saudades.
(tradução
de Luiza Neto Jorge, in Poemas, Editora Arcádia, 1977)