20.11.14

HUGO WILLIAMS


OS CÃES DA MEMÓRIA

Quando visto o casaco eles não me largam.
Querem que os leve a dar uma volta,
que lhes atire um pau para que o tragam de volta.
Os olhos deles seguem-me pelo quarto.
Quando pego num livro
baixam a cabeça envergonhados.

Levei-os aos subúrbios
e abri a porta do carro.
Quando cheguei a casa
estavam à minha espera à entrada.
Como é que me convenci
de que ia viver sem eles?


(in Última Semana, selecção e tradução de Pedro Mexia, edições Tinta-da-China, 2014)

19.11.14

JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA


EXERCÍCIOS DE CALIGRAFIA

1.
Mate em dois lances: olho fixamente,
ameaço um desenlace escondido e
nunca encontro a solução. Quando me sinto
mais aflito, cuido que não tem.


2.
Manhã de Novembro e o desatino do sol
que nem corista em dia de estreia, eu decido
ir cortar o cabelo - da última vez disseste-me
que me ficava bem. Preciso de tão pouco para me sentir
histérico, guardar as mãos nos bolsos
e alcançar um sorriso de Madonna com bambino:
pobre de quem sobe as escadas
e tropeça na tua amabilidade como um golpe
de vento nas costas, fica rígido, deseja
que a fantasia não o assalte, que a ser verdade
não se magoe e, de qualquer forma, tenha o cabelo cortado.

3.
Que imprudência! - essas fotografias onde todos
se compõem como se fizessem parte do desenho
do mundo e com traço sigiloso te contemplam,
edificando o futuro num silogismo
sem termo médio, crendo que o tempo é uma
sucessão de surpresas, programado como máquina
de lavar louça, entre duas frases
amarfanhadas, a caminho do caixote do lixo,
e o papel reservado nesse mesmo quadro.

4.
Tanta roupa lavada - e nem um par
de calças em que me sinta à vontade.
Agora tenho de beber para conseguir
dormir e Charlie Haden esforça-se nas curvas
do baixo, turtuosas e a perder de vista,
como se uma única recta
passasse por um único ponto do plano.
Saberás como é difícil conservar a própria
estima e como desprezávamos contratempos
- sentados no chão, com o tabuleiro
de permeio, não entendi
as regras. Tenho vivido
de noite, lutado com subterfúgios,
que me seria penoso que ouvisses
enumerar - a música encrespa a ilusão
de outro mundo, de um tempo reversível.


(de Peças Desirmanadas e Outra Mobília, 2000)

26.10.14



AMADEU BAPTISTA


ISAÍAS

Quem quer que sejas, persevera.
Ainda que o templo seja destruído
e sejam pavorosas as notícias,
permanece na luta, da fé ou do instinto.
Que os teus dedos marquem
a página em que estiveres para que perdures,
para que te defendas dos ferros da ameaça,
do desterro,
do açoite feroz,
da escravatura.
Ah, persevera.
Em ti, no que vês e não vês
à tua volta, no labirinto interior
em que te perdes, nas areias escaldantes
do deserto, no arco assírio que te malbarata,
em todo o mal que vês ratificado
pelos que te governam,
nos actos levianos da ganância,
nas ímpias acções que vês nos pios,
hás-de encontrar a luz,
a luz que te desola mas te ergue.
Ah, persevera.
Porque não mais haverá
violência sobre a terra e haverá vinho.
Porque se há-de alargar o lugar
da tua tenda e há-de segurar-se a tua estaca,
e a paz dos teus oficiais há-de fazer-se,
e dos teus magistrados a justiça,
e o desamparo esquecerás para sempre.



(de Sistina, Edita-Me editora, 2014)

25.10.14

ALBANO MARTINS


Raul de Carvalho, o poeta português de que hoje aqui nos ocupamos, viveu, pode dizer-se, em risco permanente. Risco físico: uma aparente robustez disfarçava a doença - as doenças, várias, cedo manifestadas - que progressiva e inexoravelmente lhe corroeu o corpo e a que acabou por sucumbir, em 3 de Setembro de 1984, num hospital do Porto. Risco existencial: «filho de sapateiro bêbado», como de si um dia deixou escrito, do pai herdou a propensão, que nele era evidente, para «tudo discutir», o temperamento arrebatado e o «orgulho» que o manteve em rigoroso e diário conflito consigo e com os outros.
Do poeta diremos que ele é o retrato do homem, e nesta afirmação a melhor e mais justa homenagem que podemos prestar-lhe.


(excerto de «Raul de Carvalho e a Poesia da Autenticidade», in As Letras e as Tintas, edições Quasi, 2006)


PAULO DA COSTA DOMINGOS


Vivi, pois, durante uma época, ainda que muito brevemente, numa casa cujas janelas me inclinavam para as traseiras de um poeta: Raul de Carvalho. Cantava; ouvia-se-lo cantarolar sobre quintais e saguões, à luz de ouro no Outono lisboeta. E ia pondo a sua roupa lavada no estendal, na alegria doce de quem vive, não sozinho: na companhia de versos em louvor dos nadas do dia-a-dia. E o seu vidro saía cortado à medida da sua casa. Algo de que nunca eu me cansei, repetindo, repetindo iguais gestos, decerto, na minha própria construção. Ler, não chega; há que ver e ouvir pela abertura do coração, comovidamente. 


(excerto de Narrativa, Frenesi, 2009)

16.10.14




FERNANDO ECHEVARRÍA


AUTO-RETRATO DE REMBRANDT

1
A TELA OCULTA O OUTRO DE SI MESMO.
Que vai surdindo dela, da perdição de análise
que está no espelho lendo
a figura perdida, já só quase
ver o fora por dentro,
enquanto ver perdura em sua idade.
Cada minúcia incita no momento
a luz do objecto visto. E a do transe
duma veia infalível a que o peso
instrumental se iluminasse.
E, do fundo do outro de si mesmo,
o ver se vê. Com o só dentro de exterioridade.

2
E A DISCRIÇÃO DE VER DOMINOU TANTO
que a implacável doçura da velhice
se esqueceu de ir chegando,
com o uso da roupa, a essa luz humilde
de crânio coroado
de indiferença à encenação sensível.
E essa indiferença cumpre-se no trato
do porte diligente que a atenção atinge
e deixa iluminar-se até no pano,
gasto no uso que exige
a paciência esquecida no trabalho.
E que o estudo a claridade erige.

3
QUE A DISCRIÇÃO TAMBÉM É LUZ. DESPRENDE-SE
tanto da roupa como da paciência
com que se espera que o olhar se entregue
ao ajuste objectivo que a tristeza
instaura à volta de cada coisa. A ergue
à só indiferença de si mesma.
Não é luz que jubile. Apenas serve.
Cumpre a penumbra duma árdua empresa
em que tufos minúsculos somente
difundem uso de quase só emergência.
De aí as formas surdem. Quase nem se
desembacia o lume da surpresa.

4
OU É A SURDA SURPRESA DO VAGAR
que pelo escuro dos castanhos sobe
até um cinzento por que não se dá
nem na camisa, nem no rubro pobre
do manto casual.
Que na paleta quase que se escondem,
como se funde na mudez das mãos
a inteligência agora quieta. Porque
espera que ver as mova instrumentais
e só então acordem
a esse sono sobrenatural
que volve humilde o poderio ao homem.

5
O SILÊNCIO COMEÇA DESDE BAIXO.
É de onde aponta a escuridão das linhas
que vão gerar essa estrutura de ângulos
difícil, mas de fundação precisa.
O pincel o sigilo vai ao canto
mais fosco alimentar. E traz acima
o nascimento vertical do traço
que o silêncio da tela em sua orla afinca
e, a custo, faz recrudescer o alto
vagar de ver. A independência pia
com que, do outro de si mesmo, tanto
a distância de ver se determina.

6
E, AÍ, A LUZ, DIR-SE-IA QUE DE DENTRO
da operação de estar a ver nos vem.
E quanta baste para nós lhe vermos
a claridade exterior. E o trem
de sono que a brancura deixa ao centro
da indiferença com que já se vê.
Mas que prolonga o horizontal acerto
da tela que na tela é tenso. E é
rectângulo que diz o descoberto,
enquanto o inferior é só refém
duma paleta que lhe adumbra o peso
e nutre o luto arcaico do pincel.

7
E UM OUTRO, DE VERTICAL DIFUSO
e de uma escuridão lenta de ofício,
de onde se arranca um quase eco de rubro
a um castanho profundo a abrir a vinho.
Mas de onde se adivinha sobretudo
que a vibração do escuro nos vai vindo,
até a cabeça destacar o vulto,
só iluminado quanto for preciso
para que em ver desembacie o estudo
a independência. Esse lugar vazio
que os outros de si mesmos vê no mundo
onde de si se vêem desprendidos.



(de Uso de Penumbra, 1995)

11.10.14

RUTH FAINLIGHT


ESSA PRESENÇA

Como um pintor afastando-se do cavalete,
erguendo-se da mesa de trabalho
com o pincel cheio de tinta, para ver melhor
onde é preciso outro toque de vermelho, como
um tapeceiro ponderando se chegou
a altura de mudar o padrão, um escultor
hesitando antes do primeiro e decisivo corte,
medito um poema, repetindo palavra por palavra,
tentando entender onde é preciso alterar uma nota,
testando a respiração, o sentido e a sorte,

como quem fita a superfície de um espelho
através dos insondáveis níveis entre vidro e prata
até às pupilas dessa presença reflectida
que por cima do meu ombro emerge das suas profundezas.


(in Visitação, tradução colectiva em Mateus, Quetzal editores, 1995)

10.10.14

SOUSA DIAS


[...] Como todas as artes, a poesia é experiência sensível, mas essa experiência não é a tradução estética da experiência vivida, não é a estetização do vivido. Não é a vida do criador que explica a obra de arte, quando muito é a obra que explica a vida, o modo de vida do autor. Impotência da psicologia em arte, ou a arte como uma antipsicologia objectiva, «poder do falso» (Nietzsche). Sem dúvida, cada poeta fala das suas experiências. Mas trata-se de experiências que são já uma evasão do vivido, a auto-ultrapassagem do vivido na sensação, em fulgurações visionárias de uma subjectividade alucinada, arrancada a si, posta na linguagem fora de si. Todos os poetas convergem neste ponto. «Os versos não são sentimentos, são experiências», escrevia Rilke (ou o seu heterónimo Malte Laurids Brigge), experiências literárias cuja matéria-prima não são pois vivências, nem mesmo a memória das vivências, mas antes, em termos rilkeanos, a sua marca «já sem nome» no poeta, o seu rasto anónimo no esquecimento de tudo: por exemplo a Infância pura tal como nunca foi vivida nem dada na recordação, o puro Amor como a invivível essência afectiva dos amores vividos. Mallarmé por sua vez falava da poesia como uma experiência sem eu, subtractiva do eu, como uma experiência de «destruição» do eu como ele dizia, mesmo se a experiência mallarmeana, ao encontrar no lugar do eu abolido apenas a linguagem e nada mais além dela, tendia a abolir com ele também a sensação, toda a sensibilidade, o 'pathos' poético. Paul Celan repetirá que «a arte põe o eu à distância», mas já antes Trakl aspirara a uma poesia «impessoal e saturada de visões», Pessoa autopsicografara o «fingimento» poético, a irredutibilidade da emoção poética à emoção psicológica, e Ruy Belo dirá que o poeta «imolou o coração à palavra». Eugénio de Andrade confirma: «a poesia é uma arte impessoal». Como o é toda a arte. 


(excerto de «Poesia, Arte Bilingue», in O Que é Poesia?, nova edição aumentada: Documenta, 2014)

8.10.14

ADOLFO CASAIS MONTEIRO

O poder de alusão da poesia — que a tal se resume tudo quanto a tradição da análise literária clássica especificou sob os nomes dos vários tropos (metáfora, perífrase, etc., etc.) — não coube nunca nessas prisões douradas que a crítica lhe foi tecendo pelos séculos fora. O poeta diz muito em poucas palavras... e a análise literária diz de menos em palavras demais. Ai de nós, tentar compreender é uma doença incurável. Pois continuemos tentando.
A poesia é esquiva. A multiplicidade de aparências em que se envolve (ou seria melhor dizer: em que a envolvemos?) permite todas as confusões, e supor-se-lhe dificuldades ou facilidades que não tem, e nas quais se vão enredando inapelavelmente todos quantos são dominados pelo desejo de ser poetas, sem que nada os disponha realmente para tal. A todos ela parece oferecer uma esperança, mas... são sempre poucos os escolhidos.
A poesia moderna «permitiu» a ilusão de ser a poesia fácil. Foi mesmo este um dos argumentos mais reproduzidos por todos quantos procuravam «razões» contra ela. É, aliás, um argumento sob o qual se revela profundo pessimismo acerca da inteligência humana: pois entenderão tais objectores que seja realmente difícil aprender a «fazer» um soneto ou uma ode? Se tal fosse difícil, como havíamos de classificar as coisas realmente... difíceis?!
Na realidade, afirmar a facilidade em fazer versos «sem medida» nem rima será o mesmo que fazê-lo... em relação à prosa! De onde se conclui que tal argumento significa antes de mais nada o seguinte: ignorância de qual seja a dificuldade tanto de fazer verso como prosa. Valery Larbaud escreveu, falando do verso livre, que ele «estabelece limites e restrições (contraintes) mais subtis e mais difíceis de manter» do que o verso chamado «regular». Mas, precisamente, não é isto coisa de aparência, que salte aos olhos dos profanos — e, entre estes, há que contar todos aqueles que se dispuseram a fazer versos «sem medida», porque agora era fácil fazer poesia...
Mas não nos iludamos! Como realmente também não era difícil fazer versos «regulares», a situação não se modificou; somente que, antes de deitar versos no papel, os não poetas de antigamente iam aprender nos tratados de versificação aquilo que lá está — ao alcance de qualquer pessoa com algumas letras. A poesia era, e não deixou de ser, difícil. A dificuldade nunca estivera na técnica de fazer versos, e continuou a não estar na suposta falta de técnica do fazer versos livres.


(excerto inicial do ensaio «Dizer não dizendo», in A Palavra Essencial, editorial Verbo, 1972)

7.10.14

JOSÉ TERRA


Ah! Lanço o fumo do meu cigarro para o Universo...

Aqui há gente, caramba!
Gente com pescoço articulado para espreitar às vezes
um rumor de gente por de fora dos muros da cartuxa.
E há um poeta que se debruça à noite sobre o mar
antes de adormecer roído pelo caruncho da História.
E há paisagens inverosímeis que pousam por dentro do crânio.
Há degraus para o silêncio.
Um sábio estuda a nova fórmula da paciência.
Há os que acreditam e vão e os que vão pela porta estreita
no carrocel da morte e vêem coisas espantosas!


(de Canto Submerso, 1956)

30.9.14

KOSZTOLÁNYI DEZSŐ


A VIDA DE KOSSUTH LAJOS

A vida de Kossuth Lajos é razoavelmente monótona.
Nasceu em Monok.

1903


(tradução de Ernesto Rodrigues, in Antologia da poesia Húngara, Âncora editores, 2002)

22.9.14

FERNANDO MELRO (1930-2014)


A FOGUEIRA CLANDESTINA

Trouxe aqui a morte para a vermos
à luz deste sol concreto e solícito:
a morte igual a todos nós, irmã mais velha e servil.
Tem uns olhos suaves, e não vivos como é justo,
e as mãos — a barca do rio Letes —
num vaivém de cuidados para nos trazer
naquele asseio pobre de irmãos mais novos,
todos órfãos da vida anterior.
Lá nos abrigaremos, no refúgio das suas mãos,
os variadíssimos náufragos
que sobejamos à vida, à ordem, à finança,
às regalias sociais, às prepotências sagradas
que nos fecham as portas da cidade
e nos expulsam ladrando como cães.
Trouxe aqui a morte para junto
desta nossa fogueira clandestina
para termos ao menos uma razão de estarmos
à volta da fogueira clandestina.
Ela nos vem contar as suas muitas histórias
porque a morte leu todos os livros que se perderam
na frustração de milhões de homens
que nunca souberam uma letra
para exclamar os seus ódios
ou exorcizar os seus medos.
A morte sabe, irmãos, poesias de poetas
cujos versos jamais saíram dos olhos deslumbrados
diante da enorme vitrina do amor inacessível.
A morte sabe, irmãos, as doces poesias
dos pacíficos poetas
calados no holocausto de Hiroshima.
A morte sabe, irmãos, as canções incompletas
dos negros africanos
e de todo o homem que sonhou a liberdade
desde o ano primeiro do pecado original
até hoje, dez de Setembro de 1970, na era de Jesus Cristo.
Trouxe aqui a morte inadiável
que nos sustenta de dia e nos acalenta de noite,
a única certeza para desejarmos
os nossos actos de amor e de sexo
e não desistirmos de crer
nos filhos
nas flores
e na força solidária das nossas mãos desarmadas.

10.9.1970


(in Natal Crítico, edições Mic, 1980)

26.8.14

EDUARDO WHITE


O QUE VOCÊS NÃO SABEM NEM IMAGINAM

Ao Abdul Magide, ao Pilinhas, ao Ungulani, ao Rui, ao Zé Camudjoma e outros

Vocês não sabem
mas todas as manhãs me preparo
para ser, de novo, aquele homem.
Arrumo as aflições, as carências,
as poucas alegrias do que ainda sou capaz de rir,
o vinagre para as mágoas
e o cansaço que usarei
mais para o fim da tarde.

À hora do costume,
estou no meu respeitoso emprego:
o de Secretário de Informação e de Relações Públicas.
Aturo pacientemente os colegas,
felizes em seus ostentosos cargos,
em suas mesas repletas de ofícios,
os ares importantes dos chefes
meticulosamente empacotados em seus fatos,
a lenta e indiferente preguiça do tempo.

Todas as manhãs tudo se repete.
O poeta Eduardo White se despede de mim
à porta de casa,
agradece-me o esforço que é mantê-lo
alimentado, vestido e bebido
(ele sem mover palha)
me lembra o pão que devo trazer,
os rebuçados para prendar o Sandro,
o sorriso luzidio e feliz para a Olga,
e alguma disposição da que me reste
para os amigos que, mais logo,
possam eventualmente aparecer.

Depois, ao fim da tarde,
já com as obrigações cumpridas,
rumo a casa.
À porta me esperam
a mulher, o filho e o poeta.
A todos cumprimento de igual modo.
Um largo sorriso no rosto,
um expresso cansaço nos olhos,
para que de mim se apiedem
e se esmerem no respeito,
e aquele costumeiro morro de fome.

Então à mesa, religiosamente comemos os quatro
o jantar de três
(que o poeta inconsta
na ficha do agregado).

Fingidamente satisfeito ensaio
um largo bocejo
e do homem me dispo.
Chamo pela Olga para que o pendure,
junto ao resto da roupa,
com aquele jeito que só ela tem
de o encabidar sem o amarrotar.

O poeta, visto-o depois
e é com ele que amo
escrevo versos
e faço filhos.


(in Nunca Mais é Sábado – Antologia de Poesia Moçambicana, org. de Nelson Saúte, Dom Quixote, 2004 / originalmente in Antologia da Nova Poesia Moçambicana, org. de Fátima Mendonça, 1993)


13.8.14

JOSÉ CARLOS SOARES


Havia a tristeza
como método, havia
a sedução

como razão. Havia
o tempo, a língua
pegajosa do sentido
marcando em cada ruga

o desenlace. O sol
também havia
até que passe.


(de O Visitante Paralelo, Língua Morta, 2013)

12.8.14



DÓRIS GRAÇA DIAS


PREFÁCIO

Dos livros. Que poderia ela dizer acerca desses objectos inteiros? Gostava deles velhos, mexidos, a cheirar a pó. Com as páginas insuportavelmente lisas, sem marcas de manuseamento, apenas as das lombadas quebradas pelo uso; sem indícios de dedos suados, mas repletas de sublinhados, de sinais, de notas à margem. Reescritas, reinterpretações.
Um livro escolhe-se. (Não, não vamos por aí. Não é o conteúdo que nos interessa agora!) Escolhe-se. Queria-os com as páginas cosidas, agarradas à capa forte, cartonada, com folhas porosas por onde se infiltrasse um simples riscado de bic, ou uma superfície macia onde sobrevivesse um borrão de tinta permanente.
Os livros por dentro têm de nos ensinar o manuseamento deles, qualquer coisa mais do que a simples imagem deles. Colectiva imagem. Plural imagem.
Gostava de espreitar os livros dos outros, tentar perceber como eles os usavam. Um livro limpo desses borrões de leitura dizia-lhe pouco. Essa tentativa de imacular, ou pretender imacular, uma leitura parecia-lhe uma farsa. Um livro fez-se para sair das nossas mãos velho. O tempo da sua leitura é o todo da sua vida. E uma infinita partícula das nossas existências, proporcional ao volume das nossas leituras. Ler, ler, ler; é só isso que os livros nos exigem. E nós a obedecermos. Sempre.
Pois não, um livro não é um objecto intocável sobre o qual não possamos reescrever as nossas vontades, desejos, ensejos, ansiedades, louvores, discordâncias. A um livro retribuem-se os sentidos que nos suscita. O entrelinhamento, as margens, os inícios de capítulos, as folhas de rosto, todos esses lugares em branco que o já escrito nos oferece, são lugares de manobra aguardando que os preenchamos.
Livre-se, caro leitor, de lhe mostrar um livro ainda em branco depois de lido. Ela encher-se-á de pressupostos e insultá-lo-á até à exaustão. Abrir-lho-á numa página ao acaso, deter-se-á sobre uma frase e questioná-lo-á sobre a sua incapacidade de ter passado por ela sem que se sentisse forçado a retê-la por mais um bocado: na página, em si, na memória, no tempo.
Um livro existe também para se descompor (atenção: ela disse descompor e não decompor); em extremo, se não gostarmos de uma frase podemos riscá-la, se não gostarmos de uma página podemos arrancá-la, se não gostarmos do todo que o constitui podemos deitá-lo fora.
A reverência é um mau hábito e a literatura de que se fazem os livros não gosta de maus hábitos. Aquilo que nos suscita prazer, que identificamos como o gosto, porque se impõe como estímulo dos sentidos, só adquire existência quando sujeito a uma escolha pessoal, feita de sujeição e rejeição.
Censura? Sim, censura! Ela há-de querer ter eternamente essa liberdade de negar páginas inteiras, de as destruir, aniquilando-as em si. Fascista da sua própria biblioteca, lápis-azul, inquisitorial, rogar-se-á o direito de formular indexes, que guardará juntamente com as cinzas desses outros livros rasgados. Porque é esta a inteira liberdade que os livros nos oferecem. A de sermos muito maus para eles, malvados até à saturação.


(de Biblos (Os Livros), Teorema, 2000)

30.7.14

MIGUEL MARTINS


Projecto de vida: Construir uma jangada. Descer um rio calmoso interminável. Alimentar-me das margens: figos de piteira, bagas, codornizes assadas no espeto ou sobre pedras quentes. Ser sempre Primavera - possuir apenas uns calções ligeiros, uma faca. Ser senhor de mim ou nem sequer. Ter o rio por espelho e desabituar-me disso. Esquecer os conluios do carvão e do aço. Assobiar melodias sem história. Foder com a água; depois, orar às estrelas. Saber que é na finitude da vida que reside a sua eternidade. Saber distinguir os sabores de oitenta águas. Saber embebedar-me com ares cegos e brisas e conversar com uma índia ou um cão incorpóreos. Morrer só, devagar, e decompor-me completamente entre chuvas e ramos de salgueiro.


(de Cotão, &etc, 2014)

29.7.14

LUÍS PEDROSO


NO PASA NADA

Não se passa nada,
como se cinco minutos depois do pequeno-almoço
tivesse entrado humidade para dentro da clepsidra
e eu saísse apavorado de uma biblioteca,
alegando silêncio em excesso

Desperdiço as minhas tardes na hemeroteca,
no arquivo fotográfico, à procura das minhas ruas,
dos becos e baldios abandonados,
pedregulhos sobre os auxiliares de memória,
e a partir de agora estar vivo é um estrangeirismo

Não se passa nada,
e o poema é um fragmento, um avolumar de palavras.
Penso na dignidade de não ter nada
e saio à rua limpo, radiante de ignorância


(de Romance ou Falência, artefacto, 2014)

28.7.14



RUI CAEIRO



Percorra a gente os caminhos que percorrer, Travessa dos Remolares incluída, sempre em nosso desnorte alguma coisa procuramos - ainda quando aparentemente estamos a fugir de qualquer coisa, às vezes nem sabendo bem de quê, ou ainda quando fugimos daquilo que procuramos ou procuramos aquilo de que fugimos.
Após tão arrevesado parágrafo, regressemos ao que ora importa, isto é, que remédio, à Travessa dos Remolares ela mesma.
Quem por lá passa, e não sei porquê (ou não sei eu outra coisa) nunca são muitos os que por lá passam, procura o quê?, foge de quê?, encontra o quê?
Há para mim mais metafísica, isto é, mais fonte de perplexidade, nestas três perguntinhas - ainda que a resposta devida a cada uma delas não passe de de um atónito «nada!» - do que nos terríveis labirintos dos livros sagrados: toras, bíblias, corões...
Percorrer a Travessa dos Remolares inculca, quer pela pequenez da artéria, quer pelo que nela há de insuportável, sair de lá quanto antes. Que aquilo não é sítio para um peão se demorar. Sair, tão depressa quanto possível, para depois trazer a rua agarrada à sola dos sapatos, à laia de algo que se pisou sem querer.


(excerto de Travessa dos Remolares, Paralelo W, 2013)

22.7.14



[por uma adesão do Senegal à CPLP]

LÉOPOLD SENGHOR


ELEGIA DAS SAUDADES

A Humberto Luís Barahona de Lemos


Ouço no mais íntimo de mim o canto de voz umbrosa das saudades.
Será a voz antiga, a gota de sangue português que ascende do fundo dos tempos?
O meu nome que remonta às suas fontes?
Gota de sangue ou então Senhor, a alcunha que um capitão pôs outrora a um bom de um marujo?
Reencontrei meu sangue, descobri meu nome o ano passado em Coimbra, em plena selva dos livros.
Mundo selado de caracteres estritos e misteriosos, ó noite das florestas verdes, alva das plagas inauditas!
Bebi — muros brancos colinas de oliveiras — todo um mundo de proezas de aventuras de violentos amores de ciclones.
Ah! beber todos os rios: o Niger o Congo e o Zambeze, o Amazonas e o Ganges
Beber todos os mares de um só trago, traço negro sem cesura não sem acentos
E os sonhos todos beber todos os livros todo o oiro, os prodígios todos de Coimbra.
Recordar, recordar apenas...

Cameleiro moiro, eis-te pois alçado à minha altura — nesse século de brio
Guerreiro, à altura da minha coragem.
À tua manha oblíqua opor a rectidão da minha lança — que desfere o raio como um veneno
À tua manha, o meu ímpeto sem costura.
Capitão ou marujo, já me não recordo, eu restauro a força dos meus fortes
A sua submissão mais dura do que os muros. Tenho ódio à desordem.
A minha missão é pascer os rebanhos
Tirar a desforra e submeter o deserto ao Deus da fecundidade.
Foi no século da honra.
Bela era a batalha, vermelho o sangue ausente o medo.
À sombra destas dunas, cantam as saudades de minhas glórias idas.

Um dia em Lagos oferta ao mar como a outra Lagos.
Não um rio mas mil rios, não uma lagoa mil lagoas
Um só e único mar com quatro distâncias.
Nenhum paletúvio: uma floresta no dilúvio, sobre a vasa fervilhante de répteis do Terceiro Dia
E no meio das aves-trombetas, macacos com seus gritos de címbalo, uma ascensão de odores mortais
E de outros, suaves como oboés.
Reinava o Terceiro Dia, e a vida corria bem.
Milhões de homens como formigas carnívoras, à corrida pelas pistas do desejo, e mulheres jazentes
Ébrias de sémen de espasmos, ébrias de vinho de palma.
Percebi os signos da Tribo.
O Amor: a morte, e com que exultação! A Morte: o renascimento cortado de raios.

Saudades dos amores antigos, saudades das minhas saudades
Do enorme vácuo vermelho da Imerina.
Ah! eu confundo eu confundo, confundo presente e passado.
Um serão houve em honra do Hóspede, em casa do Senhor dos Altos Planaltos
No meio de velas seda de cabelos, o veludo vivo das vozes o oiro dos braços de âmbar
Ao jorrar do longo queixume da orquestra
E do coro à sua volta. Acaso já ouvistes esses cantos dos Altos Planaltos, que cantam um mundo defunto
Em que a paixão é pura, impossíveis os amores, os corações abismos de vertigem?
Morrer morrer, morrer de um queixume incomensurável
Oh! morrer de um longo queixume que de súbito se nos abisma no coração.
Nada mais há, nada além do enorme e negro vácuo da Imerina.
Sangram ao longe as montanhas, como fogueiras no mato.

Perdido no oceano Pacífico, eu abordo a Ilha Ditosa — meu coração é sempre errante, o mar ilimitado.
Brancas asas de arcanjo têm os tubarões, as serpentes destilam êxtase, e os seixos...
Mulheres que são mulheres, mulheres que são frutos, e sem caroço: mulheres-sésamo.
Na escuridão dos cabelos, flores que são linguagem de Iniciados.
Trago um colar de corais, ofereço-o a quatro flores.
— Não sou livre de amar, terás que voltar amanhã de madrugada.
— A minha corola está aberta, meu mais-que-irmão, ao meu belo Príncipe-Abelha. Abstenham-se sobretudo as borboletas.
— São vãs as tuas armas meu irmão — quão ridículo é o Guerreiro!
— Morro e renasço como quero. O meu amor é milagre.
Era muito longe no tempo e no espaço, e era o mar pacífico.
Não falarei em feitos nem em reinos conquistados aos índios de ambos os horizontes.
Quantas aventuras bebidas na nascente dos rios sagrados!
Mas não tenho gosto pela magia, o Amor é a minha maravilha.
Meu sangue português perdeu-se no mar da minha Negritude.
Amália Rodrigues, canta ó canta em tua voz baixa as saudades dos meus amores antigos
Dos rios das florestas das velas, dos oceanos das praias do sol
E os golpes desferidos e o sangue derramado por tanta coisa fútil.
Ouço no mais íntimo de mim a plangente voz de sombra das saudades.



(tradução de Luiza Neto Jorge, in Poemas, Editora Arcádia, 1977)

20.7.14



LEOPOLDO MARÍA PANERO


TRÊS HISTÓRIAS DA VIDA REAL

I. A CHEGADA DO IMPOSTOR FINGINDO SER LEOPOLDO MARÍA PANERO

Ao amanhecer, quando as mulheres comiam morangos crus, alguém chamou da minha porta dizendo chamar-se Leopoldo María Panero. No entanto, a sua falta de convicção para desempenhar o papel, os seus abundantes silêncios, os seus equívocos ao recordar frases célebres, o seu embaraço quando o obriguei a recitar Pound e, finalmente, a pouca graciosidade das suas graças, convenceram-me de que se tratava de um impostor. De imediato, fiz vir os soldados: ao amanhecer do dia seguinte, quando os homens comiam peixe congelado, e na presença de todo o regimento, foram-lhes arrancados os galões, o fecho de correr, e deitado ao lixo o seu batom, para ser fuzilado logo de seguida. Assim acabou o homem que fingiu ser Leopoldo María Panero.

II. O HOMEM QUE ACREDITAVA SER LEOPOLDO MARÍA PANERO

Chovia e chovia sobre a casa de De Kooning, célebre pelas suas aparições. Ali, o filho mais novo de De Kooning, levantou-se nervoso da cama, vestiu um roupão e foi para o quarto do seu pai para lhe dizer que era Leopoldo María Panero. Enquanto se demorava a enfatizar o seu desgosto pelo filme Chávarri El Desencanto, não teve outra alternativa senão chamar um psiquiatra. Já no manicómio, persistiu no seu delírio, imaginava cenas de infância, ruas de Astorga, sinos, a pancada do meu pai. Depois de um rápido electrochoque, passou a acreditar ser Eduardo Haro, uma pequena variante da primeira figura. De imediato começou a coxear e a tossir e então afirmou ser Vicente Aleixandre. Enquanto isso, na casa do De Kooning, por entre o ruído de correntes, continuam a multiplicar-se as aparições.

III. O HOMEM QUE MATOU LEOPOLDO MARÍA PANERO (THE MAN WHO SHOT LEOPOLDO MARÍA PANERO)

O meu querido amigo Javier Barquín sempre irá acreditar que foi ele quem matou Leopoldo María Panero. Mas isso não é verdade. Ninguém nesse tempo tinha coragem para o fazer. O sujeito tinha aterrorizado a cidade inteira. Tinha raptado várias mulheres e ameaçara torturá-las. Por isso nessa tarde tomei a decisão, fui à espingardaria do Jim e comprei um revólver calibre 45. No momento em que Leopoldo María Panero tentava mais uma vez extorquir Javier Barquín, disparei de longe. Como Javier também tinha sacado de uma pequena pistola, supôs ter sido ele a fazer justiça. Toda a sua vida irá acreditar que foi ele que matou Leopoldo María Panero. Mas não foi assim. Eu sou o homem que matou Leopoldo María Panero.


(tradução minha – original in Estaciones, 2 otoño-invierno, 1980-81 / reproduzido in Poesia Completa 1970-2000, edic. de Túa Blesa, Visor Libros, 2004)

19.7.14

DAVID HOCKNEY



A Bigger Splash, 1967

Acrílico s/ tela

242,5 cm X 243,9 cm
Tate, Londres
 

JOSÉ EDUARDO AGUALUSA


Já é noite quando entro em casa. Vera Regina acha-me um ar estranho. Palavras dela:
«Estás com um ar estranho.»
Não me pergunta nada. Tenho em casa, na parede da sala de visitas, uma cópia em tamanho real de A Bigger Splash, 243,8 cm por 243,8 cm, que David Hockney pintou em 1967. Pago a um jovem artista para me fazer cópias exactas das minhas obras preferidas. Os meus amigos acham isso de muito mau gosto. Tomás, por exemplo, costuma cuspir numa tela de Edward Hopper - ou melhor, no caso, do Lúcio Falaz, é esse o nome do jovem falsário -, Rooms by the Sea, que mandei colocar no escritório: 
«Acho mais honestas as flores de plástico.»
Eu também não gosto de flores de plástico - porque não são flores. Um óleo sobre tela, porém, é um óleo sobre tela. Uma aguarela é uma aguarela. Se eu fosse muito rico comprava os originais. Se eu fosse pobre não comprava pósteres. Os pósteres, sim, são flores de plástico. Sento-me em frente de A Bigger Splash, a cópia, e demoro-me a vê-la. É uma composição simples. Uma casa, duas palmeiras, uma cadeira de lona, e, em primeiro plano, uma prancha e a piscina. Alguém acabou de saltar, mas não se vê corpo nenhum, apenas a água em desordem. O silêncio, um súbito splash, e o silêncio de novo. Eu ainda não mergulhei de vez, penso, estou suspenso no ar. Aquele é o meu retrato amanhã. Um pouco de água em convulsão e o peso puro do mistério no instante seguinte. 


(excerto do conto "A Bigger Splash", in Catálogo de Sombras, 5ª ed.: Publicações Dom Quixote, 2009 - 1ª ed. de 2003)

16.7.14

FERNANDO LUÍS SAMPAIO


HORA DE PONTA

DiCaprio is bullshit. Charles Bronson is great!
Descia o autocarro quando ouvi
um americano coxo a proferir a sua
sabedoria. Já não há espanto
que glorifique a nossa existência.

Perguntas sobre Deus? Sobre o decorrer
tacanho dos dias? Falas sobre a beleza
do giestal ancorado na neblina? Será
que tudo isso fala da vida?

Ficar calado e assistir ao bocejo
boçal de uns, à maledicência de outros
entregues à pobreza das suas vidas,
ao mesquinho horizonte da rua dos fanqueiros.


(de Falsa Partida, Assírio & Alvim, 2005)

15.7.14

HERBERTO HELDER


daqui a uns tempos acho que vou arvoar
através dos temas ar e fogo,
a mim já me foram contando umas histórias que me deixaram meio louco furioso:
um bando de bêbados entrou num velório e pôs-se à bofetada no morto,
e riram-se todos muitíssimo,
que lavre então a loucura, disse eu, e toda a gente se ria,
até a família,
tudo tão contra a criatura ali parada em tudo,
equânime, nenhuma, contudo, bem, talvez, quem sabe?
talvez se lhe devesse a honra de uma pergunta imóvel, uma nova inclinação de cabeça
— à bofetada! —
fiquei passado mas, pensando durante duas insónias seguidas,
pedi:
metam-me, mal comece a arvoar,
directo, roupas e tudo, no fogo,
e quem sabe?
talvez assim as mãos violentas se não atrevam por causa da abrasadura,
porém enquanto vim por aqui linhas abaixo:
ora, estou-me nas tintas:
pior que apanhar bofetadas depois de morto é apanhá-las vivo ainda,
e se me entram portas adentro!
¿Eli, Eli?
um tipo de oitentas está fodido,
morto ou vivo,
e os truques: não batam mais no velhinho,
olhem que eu chamo a polícia, etc. — já não faíscam nas abóbadas do mundo:
vou comprar uma pistola,
ou mato-os a eles ou mato-me a mim mesmo,
para resgatar uns poemas que tenho ali na gaveta,
nunca pensei viver tanto, e sempre e tanto
no meio de medos e pesadelos e poemas inacabados,
e sem ter lido todos os livros que, de intuição, teria lido e relido, e treslido num alumbramento,
e é pior que bofetadas, vivo ou morto,
pior que o mundo,
e o pior de tudo é mesmo não ter escrito o poema soberbo acerca do fim da inocência,
da aguda urgência do mal:
em todos os sítios de todos os dias pela idade fora como uma ferida,
arvoar para o nada de nada se faz favor, e muito, e o mais depressa impossível,
e com menos anos, mais nu, mais lavado de biografia e de estudos
da puta que os pariu



(de Servidões, Assírio & Alvim, 2013)

14.7.14

ELOY SÁNCHEZ ROSILLO


O ABISMO

Há neste ir deixando que se passe
a vida sem dar fruto, nesta voluntária
renúncia de fazer em que tantas vezes
me mantenho e que não tem, no meu caso,
nenhuma relação com a preguiça,
nem com o ermo cepticismo, nem
com essa aridez do coração que a muitos,
na minha idade, para sempre nega a palavra,
há nesta abstenção deliberada, porventura,
não sei, como que um bizarro amor ao perigo,
como que um obscuro afã irreprimível
de tentar a sorte seguindo pela berma
de um abismo espantoso. Certas vezes, passam
largos meses inteiros em que nada escrevo,
em que me oponho inexplicavelmente
a cumprir o dever que justifica
o meu existir. E digo-me: «Já há muitos anos
que deixei de ser jovem; vai-se encurtando o tempo
de que talvez disponha para levar a cabo
o labor ainda pendente: os poemas
que porfiam e aspiram ao ar e à luz
e que sem forma habitam nas sombras
do meu silêncio. Não há maior tristeza
do que a daquele que querendo ascender
não cresce nem se transforma em flor, em vida
que se afirma e que canta». No entanto, persisto
na inactividade, olhando, absorto,
cheio de culpa e de desassossego,
o fundo do abismo: o nada que desmente
as minhas velhas ilusões, a fé que me susteve,
a minha vontade de ser diante da morte.


(tradução minha - original de La Vida, Tusquets Editores, 1996)

21.6.14

LÍDIA JORGE


Muitos são aqueles que apresentam razões fortes para duvidar, mas eu tenho a certeza de que Portugal existe. Ainda há pouco tempo atravessei o território de Norte a Sul, demorei sete horas, sempre a abrir, as auto-estradas funcionaram na perfeição, e por onde elas passavam havia bandeiras verde-rubras hasteadas em locais inimagináveis - encostas de montanhas, cimo de palheiros, telhados de igrejas e até em carros de bois, atadas aos fueiros da frente, eu as vi a acenar, como se a paisagem fosse uma parada. Isto aconteceu um mês depois de a Selecção Portuguesa ter ido à Suíça como favorita e os rapazes se terem portado mal. Quando perguntei a uma funcionária da estação de serviço por que razão ainda mantinham a bandeira arvorada no alto dos cedros, ela olhou-me com um certo desprezo - "Que importância tem? Não é por perdermos que deixamos de ser portugueses." Já no regresso da viagem, vim a olhar para os campos e a pensar no poema que José Emílio Pacheco escreveu sobre o seu país. Vou procurar traduzir para português o que ele pensou em castelhano do México.

Não amo a minha pátria
O seu fulgor abstracto e inacessível.
Porém (ainda que soe mal) daria a minha vida
Por dez dos seus lugares, certas pessoas,
Portos, bosques de pinheiros, fortalezas,
Uma cidade desfeita, cinzenta, monstruosa,
Várias figuras da sua história, montanhas
e três ou quatro rios.

Eu também.


(início do primeiro capítulo de Contrato Sentimental, Sextante Editora, 2009)

20.6.14

PABLO NERUDA


XVIII

Os dias não se descartam nem se somam, são abelhas
que arderam de doçura ou enfureceram
o aguilhão: o certame continua,
vão e vêm as viagens do mel à dor.
Não, não se desfia a rede dos anos: não há rede.
Não caem gota a gota de um rio: não há rio.
O sonho não divide a vida em duas metades,
nem a ação, nem o silêncio, nem a virtude:
a vida foi como uma pedra, um só movimento,
uma única fogueira que reverberou na folhagem,
uma flecha, uma só, lenta ou ativa, um metal
que subiu e desceu queimando-se em teus ossos.


(de Ainda, trad. de Olga Savary, José Olympio Editora, 1995)

18.6.14

CECÍLIA MEIRELES


Evidência

Nunca mais cantaremos
com o antigo vigor:
o entusiasmo era inútil,
e desnecessário, o amor.

Nos rostos que mirávamos,
derreteu nosso olhar
máscaras tão antigas
que se espantavam de acabar.

Nesse mundo que erguíamos,
deixamos presa a nossa mão.
E os companheiros, nestes muros?
Quando os terminam, e onde estão?

Puros e tristes ficamos,
puros e tristes e sós.
O coração é vaga nuvem.
E vaga areia, a voz


(de Mar Absoluto e outros poemas, 1945)

2.6.14

"Temor Único Imenso"

Tenho o gosto de vos informar que o meu novo livro de poesia, Temor Único Imenso, será apresentado, pelo Henrique Fialho, no próximo dia 7 de Junho, pelas 16h00, na Biblioteca Orlando Ribeiro (Antigo Solar da Nora), Estrada de Telheiras 146 (Lisboa - 2 minutos a pé da estação de metro de Telheiras).

Está a ser editado pela Editora Labirinto, inaugurando a colecção Contramaré, coordenada pelo Victor Oliveira Mateus.

Quem não puder ou não quiser ir, pode encomendar directamente à editora pelo telefone 919283265 ou pelo email editoralabirinto@gmail.com. Para adquirir terá de ser mesmo através da editora ou num dos locais onde seja distribuído - a venda não passa por mim, pelo que peço que compreendam que não poderei guardar exemplares para ninguém.

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3.5.14



DANIEL JONAS


SE NÃO TE AMAREM FINGE QUE NÃO AMAS.
E se te amassem outro amariam:
E só a si, se bem que fingiriam
Amar-te e dar-te a ti o que reclamas.
Pois mesmo que te amassem mentiriam.
E se amam outro a si outrossim amam
E noutrem só a si mesmo reclamam,
Que amante e coisa amada se diriam...
E porque hás-de fingir que amam a ti
Se não se amam em ti sequer mas noutro?
Porque hás-de amar alguém que ama nestoutro
A imagem de si mesmo, e só a si?
Esse ama quem não te ama, afinal…
E mesmo que ame, esse é o teu rival

–//–

PERDOA-ME, SENHOR, POR NÃO SER DIGNO
De mim, de mim sou escasso, o meu fracasso,
Sou qualquer coisa aquém de quem não faço
Ideia, sendo esquivo ao próprio signo.
Oh, vai mudando sempre o meu destino.
Onde me pus? Nem sei... Sou um mendigo.
Acarto com a casa do que digo
E lúcido de próprio desatino.
De mim já fui capaz, agora sou
Só velho, sobre mim me mesurando,
Vassalo e suserano de mim mesmo.
Do meu sonho, o que resta, acordou?
E a mola de rapaz cercas pulando?
Um velho vê cercado o seu sesmo…


(de Nó – sonetos, Assírio Alvim, 2014)

26.4.14

JOANA EMÍDIO MARQUES


29.

Das torres partem os proscritos
às primeiras substantivações das figuras
que a febre tornou frases
e a morte tornou senhores.

Vagueiam na absoluta certeza
da exiguidade inominável do mundo
vagueiam entre as torres
e os muros e as mesas vazias
partem incessantemente
do mesmo lugar imóvel.
Não O desejam
para que assim seja mais fácil
suportar a certeza
da exiguidade inominável do mundo.


(de Ritornelos, abysmo, 2014)

15.4.14



[EDUARDO GAGEIRO, 25-4-74, Terreiro do Paço]

Não há mais mãos que valham o silêncio
Do que as visíveis na fotografia
Do momento em que um Homem trinca o lábio
Inferior. Fica a fracção desses sonhos

Somando aleatoriamente letras
E números do acaso da História
(eme, é, dezanove, dezanove)
Contada aos olhos atentos, contada

De memória em fragmentos junto ao
Mesmo Tejo da infância de nós
Todos. Uma matrícula de carro

De combate, a voz de gente calada
A caminho de outro dia, de outra
Vida trazida para a fraternidade.

8.4.14

GOTTFRIED BENN


A TI TUDO TENS DE DAR

Dá no teu contentamento,
no morrer, trocados antes
o sonho e o pressentimento,
esta hora, o seu alento
tão de umbelas sussurrantes,
a foice, as marcas do Verão
dos campos orientadas,
bilha e taça de água em tão
doce fadiga inclinadas.

Tens de dar-te tudo, os
deuses nada te vão dar,
dá-te esse leve pairar
por entre rosas e luz,
ao que em céus já azulou
vai-te a seu encanto dando,
o último som passou
escuta-o silenciando.

Fosses o Só tão-somente,
fosse a cerração criada
por ti, ah vai a silente
e pura estrada apagada,
é já a hora, leve desce
a hora do fuso na luz,
em sua roca a parca a tece
e o fuso a cantar conduz.

Fosses a grande ruptura,
o choro em ti se prendeu,
lágrimas são água dura
que sobre pedras correu,
tudo ficou consumado,
nem choro nem ira crus,
tudo em vagas deslumbrado
e teu em rosas e luz.

Hora doce. Envelhecer!
Já oferecido o brasão:
touro entre tocheiros, ver
tochas viradas ao chão,
só de praias, só de um mar
laranja, dos Lidos, fundo
esfingídeo enxamear
guia as sombras a este mundo.

Tudo te deste, assim queiras
dar-te a última alegria,
toma o bosque de oliveiras
e as colunas todavia,
já os membros desfalecem,
teu rosto final traduz
que mensageiros lhe descem
todos em rosas e luz.


(versão de Vasco Graça Moura, in 50 Poemas, Relógio d'Água, 1998)

7.4.14

ANTÓNIO RAMOS ROSA


Mil cores, e uma sombra só te despe.
Substância perfeita da sombra mais feliz.
Substância ardente e diamante firme.
Água feliz do corpo, água de mil sombras,

e esta é a mais fresca, onde o cavalo bebe
sobre os teus seios tão altos como as chamas mais verdes.
O teu vestido de sombras torna cálido o corpo
e as sílabas do cavalo refrescam-se no mar.

Na praia mais selvagem caminha esse cavalo
que nos transforma o corpo e nos abre a face
mais escura da terra. E todo o mundo aceso.


(de Ciclo do Cavalo, Limiar, 1975)


JAIME ROCHA


VARIAÇÃO SOBRE POEMA 26 DO CICLO DO CAVALO
Para o António Ramos Rosa
Um cavalo desce pelo corpo danificado
da água, pelas suas ranhuras, pelo segredo
que se esconde nas conchas.

Falo de um corpo feliz, dos despojos de
um barco na sombra, de uma lua azul que
vem beber com os pássaros e transforma
as pedras num autêntico abismo.

É um cavalo com as armaduras inclinadas
para o vento, para o teu rosto, acrescentando
à pintura uma luz devoradora.
Um cavalo que percorre o espaço aberto da
areia como se investisse contra uma paisagem
de mármore e nela encontrasse o teu corpo frio,
uma mulher febril com os braços pendurados
na madeira.

O cavalo e a mulher debatem-se com as ondas,
perdem-se no tempo. Ele esmagando-lhe o
peito com os cascos, ela cegando-o com as mãos
como se pertencessem a uma deusa de vidro.


Ambos, ela e o cavalo, despidos sob uma lâmpada,
dançam no silêncio. É a terra que se abre para eles,
a terra escura, o pensamento.
Lisboa, 2007

(de Lâmina, Língua Morta, 2014)

6.4.14

AL BERTO


LÁZARO

é tempo de simulares a ressurreição

ergue-te da eternidade dos astros
escava nas veias três dias mortas
o sonho
e no fundo do espelho respira alegria
sobre o rosto escuro como um mingrólio
acende-te
na humidade sonolenta das mãos
finge a vida
mesmo que permaneças morto
bebe
a perene memória das imagens

levanta-te de mim lázaro
como se fosses água ainda turva
sublima-te com o delicado fulgor da respiração
e não regresses mais à desolação da terra
nem ao contínuo movimento falso
do coração


(da sequência "Sete Poemas do Regresso de Lázaro", in O Medo, Assírio Alvim, 1997 - originalmente em A noite progride puxada à sirga, 1987)

5.4.14

NUNO MOURA


REPETE-SE, A TUA SOMBRA

Quase enorme o lanho da vacina
na régua das datas memoriais,
a bombazina das artérias
por te bombearem tantas vezes
ao moinho do cérebro.

Que há disto, da constante abébia
ao teu riso manageiro contagiante dos estalos
da demência na copa dos músculos,
que há da chaga das campainhas em florete
nas gengivas à pronúncia do teu nome,
do arranho do escopro que fofo te vai espetando
no croché das vontades de ti,
um atropelo.

Resinoso, colo-me plural todo língua
na paisagem dormente da divisória onde
das regueiras de um golfo cairá primeiro um atilho
que enforco à cintura para poderes puxar, depois um besunto
de tinta-da-china que me encara a frente e a cruz dos braços
para que o holofote que trago dentro não te indisponha
e tu correria amena, minha sombra única,
meu el-rei, meu legado, meu perímetro
apagado de carne,

eu caio assim.


(de Soluções do Problema Anterior, &etc, 1996)

4.4.14

JORGE FALLORCA

O isolamento — eu prefiro chamar-lhe e assumi-lo como ausência — a que me fui dedicando, libertou-me dos riscos e confusões da arregimentação geracional movida pelos expeditos mangas-de-alpaca da literatura.
Sem me perguntarem se estava interessado ou se autorizava — claro que a minha vaidade de adolescente provinciano não só estava interessada e autorizava, como se sentiria irremediavelmente magoada se não constasse — incluíram nas antologias Poesia 70 e 71 textos meus surripiados nos suplementos juvenis ou literários, pródigos à época. Eventualmente estimulado pelo pacato sucesso da iniciativa, um outro mercenário editorial viria a adoptar o mesmo critério, considerando-me sobejamente ressarcido com o relutante envio de um exemplar de uma coisa inexplicavelmente chamada Continente/1, que também agradeci silenciosamente e terei igualmente folheado até lhe gastar as páginas onde me contemplava.
Vencida a curiosidade inicial — de assistir e, ocasionalmente, perturbar —, pautei as quase três décadas que vivi em Lisboa por um comportamento arisco às plateias promocionais, se não com indiscutível mestria, pelo menos com inegáveis resultados.
E se não faltou quem se preocupasse em manter-me ao corrente do repúdio (empolando a assiduidade e a dimensão) que a simples alusão do meu nome provocava, também não faltou quem pretendesse solidarizar-se para se regozijar a avaliar o que só podia conceber como uma espécie de extensão dos estragos, incorporando-me — agora ele, e em que outro poderia ser? — no bando ressabiado e cínico dos chamados marginais...
Tive sorte: o álcool e a loucura encarregaram-se de me pôr a salvo de uns e de outros. Quando me recuperei e consegui trocar Lisboa pelas Casas do Monte Alto, verifiquei que a natural e incontível emergência de outras gerações já se encarregara de cagar — literal e literariamente — naquela a que apenas pertenço pela força temporal das circunstâncias, concedendo-me a liberdade de esquecer o incómodo da proximidade.

«Toda a história universal não me parece ser nada mais do que um livro ilustrado que reflecte o mais intenso e cego anseio dos Homens: o anseio do esquecimento. Pois não extingue cada geração, através da proibição, do abafamento, do escárnio, sempre precisamente aquilo que parecia mais importante à geração anterior?» — Hermann Hesse, Viagem ao País da Manhã


(in a cicatriz do ar, edição do autor, 2009 – na foto: Livraria Trama)

3.4.14

CESAR VALLEJO


E SE DEPOIS DE TANTAS PALAVRAS...

E se depois de tantas palavras,
não sobrevive a palavra!
Se depois das asas dos pássaros,
não sobrevive o pássaro parado!
Mais valeria, na verdade,
que comam tudo e acabemos!

Ter nascido para viver da nossa morte!
Levantar-se do céu rumo à terra
por seus próprios desastres
e espiar o momento de apagar com a sua sombra as suas trevas!
Mais valeria, francamente,
que comam tudo e tanto faz!...

E se depois de tanta história, sucumbimos,
não já de eternidade,
mas dessas coisas simples, como estar
em casa ou pôr-se a matutar!
E se em seguida descobrimos,
subitamente, que vivemos,
a avaliar pela altura dos astros,
pelo pente e as nódoas do lenço!
Mais valeria, na verdade,
que comam tudo, sem dúvida!

Dir-se-á que temos
num dos olhos muita pena
e também no outro muita pena
e nos dois, quando olham, muita pena...
Então... Claro!... Então... nem uma só palavra!



(in Antologia, tradução de José Bento, Limiar, 1981)