31.12.03

Cavalo, cavalinho, cavalicoque: lá se acabou o Poemário 2003 da Assírio...
XANA

Final do Ano (Zero a Zero)


Muito ao longe sinto as horas
E os minutos a correr
Vejo as mágoas já passadas
E os moinhos por mover
Entre os sonhos vitimados
E os que ainda vão matar
Vejo o final do ano a chegar

Pelos lábios ressequidos
Das palavras que inventamos
Pela força que desmaia
Pelos perigos que passamos
Entre a espera comedida
E a pressa de já lá estar
Vejo o final do ano a chegar

Zero a zero

Por entre o riso contagiante
E o silêncio mais profundo
Entre o choro comovente
De alguém lá no bar do fundo
Entre o gelo derretido
E as vitórias por brindar
Vejo o final do ano a chegar.

(do CD Espanta Espíritos, de 1995 - com música de Jorge Palma)

29.12.03

OCTAVIO PAZ

SILÊNCIO


Assim como do fundo da música
brota uma nota
que enquanto vibra cresce e se adelgaça
até que noutra música emudece,
brota do fundo do silêncio
outro silêncio, aguda torre, espada,
e sobe e cresce e nos suspende
e enquanto sobe caem
recordações, esperanças,
as pequenas mentiras e as grandes,
e queremos gritar e na garganta
o grito se desvanece:
desembocamos no silêncio
onde os silêncios se emudecem.

(de Libertad bajo palabra, 1960 / traduzido por Luís Pignatelli e incluído em Antologia Poética, publicações Dom Quixote, 1984 - Poesia Século XX)

28.12.03

[gosto muito de inventários XXXIII]

RUI KNOPFLI

INVENTÁRIO


Rosas inglesas rosa pálido tingido
de alvura, gravatas Lanvin e Ricci.
Na mão a demorada taça de ordálio,
ouro velho e insidioso, doce cheiro a fumo.
Objectos familiares, ténues, difusas

lembranças de longe. Um crânio
de ébano negrejando entre a luz
e a garrulice do barro artesanal,
o cio magoado da voz fadista. A ilha ao sol,
ao sonho, amortalhada na distância.

O cajueiro e a mafurra, micaias
agrestes, panoramas da infância,
dolorosos, esbatidos fantasmas
de outro tempo, agigantados em olmos
e castanheiros na oval cinzenta

do No Man's Common. Livros por abrir
dormitando na poeira, o gráfico
anguloso do horóscopo, retratos,
memória paralisando o instante
esquecido. A mulher de passagem,

velo fulvo, debrum para o azul
lavado do olhar, perfil mitigando
a vacilante modorra do entardecer.
Alongada curva do flanco retraindo-se
sob a experimentada carícia antiga

dos dedos cansados. Toda a memória
inflectindo o gesto, o gesto já só memória
que de si mesma se desprende e afasta,
conjecturando, indolor, a paisagem
neutra dos dias que se avizinham ermos.

(de O Corpo de Atena, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984)
[outros melros XIII]

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

O melro


Tanto quanto eu, ele ama
as folhas secas, debica-as
e devora-as. Está a procurar
debaixo da face da folha
os vermes. Percorre com apuro
recessos, as nervuras.
Trabalha com amor
para a sua memória.

(de Três Livros - publicado pela primeira vez em Obra Breve, editorial Teorema, 1991)

27.12.03

RUY BELO

ORLA MARÍTIMA


O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo da avenida
ao sol dos solitários dias de dezembro
Tudo ali pára como nas fotografias
É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
És tu surges de branco pela rua antigamente
noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher
(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)
«Mudança possui tudo»? Nada muda
nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados
levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas
Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
Somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao rio em redor
pássaros compêndios de vida
e morte resumida agasalhada em asas
Ali fica o retrato destes dias
gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão solar de uma alegria calma
De terra vem a água e da água a alma
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida

(de Homem de Palavra[s], 1970)

26.12.03

As meninas duais passaram-se... e passaram-se bem!
Já não bastavam as coisas boas que nos têm dado, arranjaram maneira de dar prendas personalizadas a uma multidão de amigos.

A prenda que me calhou foi esta:

SANDRA COSTA

caridade


tudo falta, inevitavelmente,
se a noite dos néons cria um círculo fechado
sobre as ruas e de fora fica a cintilação
dos corações que amam o próximo

(acrescento ao poema um interminável silêncio
que um arqueólogo encontrou junto de velhas ânforas
que um dia deram de beber aos lábios)

25.12.03

RUI KNOPFLI

Nasceu em 1932, em Moçambique.
Morreu no dia de Natal de 1997.

AMOR DAS PALAVRAS

Amo todas as palavras, mesmo as mais difíceis
que só vêm no dicionário.
O dicionário ensinou-me mais um atributo
para o sabor de teus lábios.
São doces como sericaia.
Faz-me pensar ainda se a tua beleza não será
comparável à das huris prometidas.
No dicionário aprendi que o meu verso é
por vezes fabordão e sesquipedal.
Nele existe o meu retrato moral (que
não confesso) e o de meus inimigos,
rasteiros como seramelas sepícolas
e intragáveis como hidragogos destinados à comua.
O dicionário, as palavras, irritam muita gente.
Eu gosto das palavras com ternura
e sinto carinho pelo dicionário,
maciço e baixo e pelo seu casaco, azul
desbotado, de modesto erudito.

(de O País dos Outros, 1959)
FERNANDO SYLVAN

Nasceu em 1917, em Díli, Timor-Leste.
Morreu no dia de Natal de 1993.

Infância

as crianças brincam na praia dos seus pensamentos
e banham-se no mar dos seus longos sonhos

a praia e o mar das crianças não têm fronteiras

e por isso todas as praias são iluminadas
e todos os mares têm manchas verdes

mas muitas vezes as crianças crescem
sem voltar à praia e sem voltar ao mar

(de Tempo Teimoso, 1974)
CHARLIE CHAPLIN

Nasceu em 1889, em Londres, Reino Unido.
Morreu no dia de Natal de 1977

Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado, ele recebeu o poder sobre os seus ombros, e lhe foi dado este nome: Conselheiro-maravilhoso, Deus-forte, Pai-eterno, Príncipe-da-paz, para que se multiplique o poder, assegurando o estabelecimento de uma paz sem fim

(Isaías, 9, 5-6)

24.12.03

LOPES MORGADO

Ando a esperar-me num longo advento
Ando a nascer-me num parto lento

E entretanto
quanto me pesa
vivo encantado no meu encanto
nesta certeza-quase-incerteza
de já ser gente

precocemente

(de Agora que Nasci - poema do natal intemporal, Multinova, 1976)

23.12.03

E. E. CUMMINGS

I


mOOn Over tOwns mOOn
whisper
less creature huge grO
pingness

whO perfectly whO
flOat
newly alOne is
dreamest

oNLY THE MooN o
VER ToWNS
SLoWLY SPRoUTING SPIR
IT

(de No Thanks, 1935 - incluído em Poems 1923-1954, New York, 1968)
Hoje, na rua 1º de Dezembro, na Baixa de Lisboa, pouco antes das 6 da tarde, cruzei o meu olhar com o de um descendente de Almeida Garrett, também ele escritor.
Ele não me conhece, mas no lapso de segundo em que me olhou, parecia que me conhecia.
Sinto que, nesse instante, fui uma personagem de algum dos seus contos. Ou alguém de um poema de um amigo comum.
[parece-me que o Rui Manuel Amaral quer ler este texto...]

JORGE DE SENA

1888 E A POESIA


Em 1888 nasceram três grandes poetas, glórias da língua italiana, da língua portuguesa e da língua inglesa: a 8 de Fevereiro, em Alexandria, Egipto, Giuseppe Ungaretti; a 13 de Junho, em Lisboa, Fernando Pessoa; a 26 de Setembro, em St. Louis, Missouri, Estados Unidos, T. S. Eliot. A poesia das suas respectivas línguas e a poesia universal só por equívoco continuaram a ser as mesmas depois da revolução expressiva que cada um deles efectuou. E sem dúvida que Pessoa, se vivo fosse, conheceria este ano uma consagração gloriosa como a que os países anglo-saxónicos estão tributando a T. S. Eliot, e como a que não sei se a Itália terá tributado a quem é hoje o seu maior poeta vivo. Altos espíritos, para nenhum deles a poesia foi um dom gratuito dos deuses, mas uma atenção, uma coragem, um desassombro. Críticos lúcidos, influíram poderosamente no pensamento estético do seu tempo, e com eles, como com outros que os precederam ou seguiram de pouco, sofre um golpe mortal a concepção romântica da poesia como devaneio sentimental. São, em que pese a crítica, poetas da inteligência, da emoção dilucidada, da acuidade expressiva. Não são artistas do verso - que os houve sempre demais, e mesmo entre os românticos -, mas artistas da criação poética, da poesia como conhecimento e apreensão profunda. Homens de expressão exacta, densa oblíqua, ultrapassaram simultâneamente a ambiguidade simbolista, que a todos marcou, e a imprecisão romântica, a que todos fugiram. E, sobretudo, liquidaram o arsenal de convenções temáticas, imagísticas e linguísticas da mediocridade poética, expondo-o no pelourinho da secura irónica ou da severidade ascética da expressão. Pessoa não necessita de ser relembrado em seus versos, pois que, depois de Camões, nenhum poeta português conheceu, como a sua obra está conhecendo, um tão autêntico e tão vasto prestígio. Mas de Eliot e Ungaretti, menos conhecidos entre nós, até por menos difundidas as suas línguas que o espanhol ou o francês, há que lembrá-los por poemas seus. A seguir encontrará o leitor a tradução, que fiz, de dois dos mais célebres poemas e dos mais característicos de uma certa maneira de cada um: O «Boston Evening Transcript», de T. S. Eliot, Io Sono uma Creatura, de G. Ungaretti.

O «BOSTON EVENING TRANSCRIPT»
de T. S. Eliot

Os leitores do Boston Evening Transcript
Curvam-se ao vento como seara madura.

Quando a tarde se apressa um pouco na rua
Despertando apetites de vida em alguns
E a outros trazendo o Boston Evening Transcript,
Eu subo as escadas, toco a campainha,
Voltando-me cansado, como que se voltaria para acenar adeus a Rochefoucauld,
Se a rua fosse tempo e ele no fim da rua,
E digo: - Prima Henriqueta, aqui está o Boston Evening Transcript.

(Prufrock and Other Observations, 1917)


SOU UMA CRIATURA
de G. Ungaretti

Como esta pedra
do S. Miguel
assim fria
assim dura
assim enxuta
assim refractária
assim totalmente
desanimada
como esta pedra
é o meu pranto
que não se vê

A morte
desconta-se
vivendo.

(Allegria di Naufragi, 1919)

(de O Dogma da Trindade Poética (Rimbaud) e Outros Ensaios, edições Asa, 1994 - originalmente publicado em Gazeta Musical e de todas as artes, Ano IX, 3ª série, nº 91/92 de Outubro/Novembro de 1958)

22.12.03

ANTÓNIO RAMOS ROSA

Tocar com um dedo, auscultar
a pulsação,
o ritmo único das pedras do deserto,
algumas ervas ou talvez estrelas,
talvez apenas uma haste silenciosa
e, todavia, saber arriscar tudo
num jogo em que a pobreza é extrema
e o desastre de um exacerbado múltiplo
pode fragmentar o prisma incorruptível
e desviar o dardo da divina desmesura.
A mão, no entanto, escruta e suscita
as constelações tecidas pela matéria
do silêncio num alvor de navio
e as torres lentas das pulsações
ao longo das veias
com janelas abruptas e ardentes.
Há um assombro nos músculos e palavras
e os olhos são porosos como os seixos.
Fulminado pelo impossível, o poema
sustenta-se sobre o ilegível
entre a plenitude e o nada.

(de O Centro Inteiro, em colaboração com Agripina Costa Marques e António Magalhães, Cadernos Solares, 1993)

21.12.03

JORGE PALMA

+ 1 Comboio


Vejo tanto olhar encafuado
Em automóveis bestiais
Casos graves de bem estar,
Por mais que tenham, nunca têm a mais.

Aleijados do conforto,
Refugiados na t.v.,
O pior não é estar triste
O pior é não saber porquê.

Há o entretenimento
Há o remoto control
Há-de haver mais um comboio
Para o centro comercial

Nesta altura ninguém faz greve,
Embora muitos tentem adormecer
Alguns vão derretendo a neve
Nas colheres a ferver.

Nas entradas do metro, o frio
É combatido com papel de jornal
Útil informação para os que estão na frente,
Cegos pelas luzes do Natal.

(do CD Espanta Espíritos, de 1995 - com música de Flak)

20.12.03

O prémio Luís Miguel Nava, instituído em 1998 pela fundação criada por vontade testamentária do poeta e a que também foi dado o seu nome, tem premiado todos os anos um livro de poesia editado no ano anterior.
Têm sido escolhidos excelentes livros, mas não dos mais divulgados, até porque a poesia, por si, não é mediática - o próprio poeta que dá nome ao prémio só há pouco tempo começa a ser mais conhecido e, mesmo assim, quase só pelos poucos leitores habituais de poesia.
Será interessante verificar, na lista abaixo, que todos os autores dos livros premiados até agora são autores já consagrados e todos mais velhos que Luís Miguel Nava (1957-1995). Este facto contrasta com o (quanto a mim) excessivo furor que tem provocado a poesia de poetas nascidos muito depois de Nava.

Eis a lista:

1997 - O búzio de Cós de Sophia de Mello Breyner Andresen (n. 1919)
1998 - Geórgicas de Fernando Echevarría (n. 1929)
1999 - Quatro Caprichos de António Franco Alexandre (n. 1944)
2000 - Lisboas de Armando Silva Carvalho (n. 1938)
2001 - Teatros do Tempo de Manuel Gusmão (n. 1945)
2002 - Lições de Trevas de Fernando Guimarães (n. 1928)
FERNANDO GUIMARÃES

Nasceu em 1928.

As nossas mãos, ao abrirem um livro, por vezes detêm-se subitamente.
Mas logo outro movimento principia, o dos olhos que procuram não as mãos que seguram o livro, mas aquelas que o escreveram. É, então, que se encontram aí novas palavras. Elas são as que efectivamente lemos, mas não lhe pertencem agora. Desapareceram para que o livro seja escrito desde o princípio.

(texto inicial)


O que podemos esperar? É mais perto que vês
um caminho. A ele nos habituamos. É deste modo
que consegues compreender-me melhor. Reparas agora
como os gestos podem ficar reduzidos a um único
movimento e as cores à mesma transparência
que as há-de tornar maiores. Encontras o sentido
que pertencia a tudo, para que finalmente seja
apenas nosso, como se olhássemos para longe.

(da sequência Acerca do Sentido)


O olhar diante de outro olhar o que vê? Antes
era a distância entre ambos, esse relance súbito
que se torna interior, o seu cume tranquilo
dentro de cada imagem. Há um novo segredo
que vinha ter connosco e ali ocupa o espaço
que não é de ninguém. Assim foi o princípio
tão súbito dessa perda para que seja a leve
intimidade de em tudo haver o mesmo encontro.

(da sequência Lições de Trevas)


SEGREDO

Os gestos que esconderam qualquer rosto.
E mais nada. O que sentes lembra agora
uma enseada ao longe. Assim o modo
de surpreender mais cedo o que era a mesma

imagem que sujeita a própria ausência
ao que por ser assim contém a nova
vontade de encontrar uma mais íntima
direcção insuspeita que se alonga

noutro sentido até ficar oculta
só por instantes no que se aguardava
há muito: este segredo onde procuras

um rio ou uma ponte, os gestos leves
sobre o rosto voltado para nada
daquilo que foi nosso e assim se perde

(da sequência Seis Poemas)


Caminhamos até este lugar. Fecho os olhos para conhecer
o que se torna igual a uma promessa. As flores morrem nas jarras
e deixam cair ao longo dos caules um peso estranho. Tu reparaste
na sua transparência. Como era íntimo esse movimento capaz de vir
percorrê-las para ser menor esta destruição. É assim que principia
a perda do mesmo brilho que existe à nossa volta. Já nada
espero e, por isso, deixei que de mim o tempo se afastasse. De longe
chega uma voz e ela procura os lábios vazios até ficar dispersa
pela névoa. É talvez uma única palavra. Há quem julgue
que se trata da pronúncia que passa por uma ferida.

(da sequência Considerações de Ovídio acerca do seu desterro)

(poemas do livro Lições de Trevas, edições Quasi, 2002 - biblioteca “uma existência de papel”)
MATILDE ROSA ARAÚJO

Nasceu em 1921.

PÁGINAS DE DIÁRIO

Outro dia
Montanhas longe alagadas de rosa pálido. O sol já se pôs aqui, as árvores estão mais escuras, os prédios indecisos parece que vão cair. Em baixo passa uma menina de branco, chapéu e vestido brancos, numa bicicleta. Um chapéu de abas largas. Ali mais para a esquerda os montes estão azuis. Uma tristeza enorme me torna prisioneira solitária de uma ilha e mesmo assim sinto-me senhora do mundo. A minha janela é alta e a beleza deste morrer do dia tamanha. Já a menina deslizou e sumiu-se como uma flor pelo asfalto cinzento a rolar. E eu fui assim como uma gota que de mim inteira resvalasse.

(in Árvore - folhas de poesia - 1º fascículo, Outono de 1951)



LUCIDEZ DESNECESSÁRIA

Diante das estrelas
E do sol
Sabendo a morte
E a vida aranha
Disconforme
E concordante
Pronta a parar na teia
Envelheci
Mas posso olhar ainda
Ainda
Cravos de sangue e rosas da estrada
Como se eterna fosse
Mas tão tarde.

(de Voz Nua, livros Horizonte, 1986)


VIDA

- Mãe! O mundo é mau,
Torna a flor num lodo
E um pássaro num verme,
E eu não sabia...

- Filha! Semeia flores no lodo,
Empresta o teu canto ao verme.
Se as tuas mãos continuarem puras
E meigo o teu coração,
Acredita que o mundo é belo.
E saberás!

(de O Cantar da Tila - poemas para a juventude, Atlântida editora, 1979 - desenhos de Maria Keil)
Recentemente foram anunciados prémios para dois grandes poetas, daqueles de que se fala pouco e de que se seria bom falar mais:

- Já há umas três semanas foi anunciado o prémio de carreira da Sociedade Portuguesa de Autores para Matilde Rosa Araújo, escritora luminosa que muitos continuam a remeter apenas para o território da "escrita para crianças";

- Esta semana foi anunciado o prémio Luís Miguel Nava para Fernando Guimarães pelo seu livro Lições de Trevas. Fernando Guimarães é um poeta de rara intensidade, mas é também um excelente crítico de poesia - crítico no verdadeiro sentido da palavra: aquele que procura perceber, aquele que está atento aos pormenores e às subtilezas, "nomeando, sem preconceitos, e com detalhe as suas características" (cf. Houaiss). Neste caso estão também de parabéns os editores, o Jorge e o valter, pela dedicação que têm manifestado pela poesia de consagrados esquecidos e de novos por conhecer.

19.12.03

CARL SANDBURG

Filho de imigrantes suecos, nasceu em 1878, em Galesburg, perto de Chicago, EUA.
É um dos nomes mais importantes da literatura americana do séc. XX.
Morreu em 1967, na Carolina do Norte.

Esqueci o significado de vinte ou trinta poesias escritas há trinta ou quarenta anos. As minha preferências vão ainda para poesias bem fáceis publicadas há muito e que continuam a atrair as pessoas simples. (da introdução a Complete Poems, 1951)


ANNA IMROTH

Cruza-lhe os braços sobre o peito - assim.
Endireita-lhe um pouco mais as pernas - assim.
E chama o carro para que a leve a casa.
A mãe dela há-de chorar, e também as irmãs e os irmãos.
Mas os outros salvaram-se todos: foi ela a única rapariga da fábrica
[que não teve sorte ao saltar cá p'ra baixo quando o fogo irrompeu.
Andou aqui a mão de Deus - e a falta de uma saída de emergência.


CHAMFORT

Apresento Chamfort. Um exemplo.
Fechou-se na biblioteca com uma pistola
e com um tiro desfez-se do nariz e do olho direito.
E este Chamfort sabia como se escreve
- milhares de pessoas liam os seus livros sobre a maneira de viver -
mas não era capaz de se matar
por suas próprias mãos - estão a perceber?
Foram dar com ele no tapete, num charco de sangue,
frio como uma madrugada de Abril:
falava e falava, dizendo máximas divertidas e pungentes epigramas.
Pois bem, tapou o nariz e o olho direito como uma venda,
bebeu café e conversou anos e anos
com homens e mulheres que gostavam dele
porque sabia rir e todos os dias desafiava a morte:
«Vem daí buscar-me!».


SOPA

Vi um homem famoso comer sopa.
Vi que levava à boca o gorduroso caldo
com uma colher
Todos os dias o seu nome aparecia nos jornais
em grandes parangonas
e milhares de pessoas era dele que falavam.
Mas quando o vi,
estava sentado, com o queixo enfiado no prato,
e levava a sopa à boca
com uma colher.


FUGA

Todos amavam Chick Lorimer na nossa cidade.
E mesmo fora da cidade
Todos o amavam.
Pois é: não há nenhum de nós que não ame uma estranha rapariga
que aperta ao peito o sonho que a empolga.
Ninguém sabe, agora, para onde foi Chick Lorimer.
Ninguém sabe porque fez a mala, com poucas, velhas coisas,
e fugiu
fugiu com o queixinho
espetado para a frente
e os leves cabelos ondeados
em desalinho sob o chapéu,
ela que dançava, cantava, amava com ferocidade e alegria.

Eram dez, eram cem os homens que seguiam Chick?
Eram cinco, eram cinquenta os que tinham o coração despedaçado?
Todos amavam Chick Lorimer.
Ninguém sabe para onde fugiu.

(poemas traduzidos por Alexandre O'Neill e publicados no número 4 da série de antologias Tempo de Poesia, s/d)
ALEXANDRE O'NEILL

CAIXADÓCLOS


- Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim?
- Que és o esticalarica que se vê.

- Público em geral, acaso o meu nome...
- Vai mas é vender banha da cobra!

- Lisboa, meu berço, tu que me conheces...
- Este é dos que fala sozinho na rua...

- Campdòrique, então, não dizes nada?
- Ai tão silvatávares que ele vem hoje!

- Rua do Jasmim, anda, diz que sim!
- É o do terceiro, nunca tem dinheiro...

- Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você...
- Dos dois ou três nomes que o surrealismo...

- Ah, agora sim, fazem-me justiça!

- Olha o caixadóclos todo satisfeito
a ler as notícias
...

(de Feira Cabisbaixa, 1965)
Sigam o O'Neill!

18.12.03

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANA

Poesia: o nada que é tudo


(...)
Quando lhe disserem que a poesia não tem mais lugar neste mundo dos diabos (porque no dos deuses sempre tem), não acredite. Quando lhe disserem que no planeta Bush continuam erguendo muros que separem homens e culturas, observe que a poesia ainda pode congregar vozes e esperanças. (...)

Minha cabeça tenta entender essa coisa intrigante. Se os editores dizem que poesia não vende, que poesia não rende, que ninguém compra poesia, que poesia não se negoceia nas bolsas de valores, então, Senhores do Conselho de Sentença, dizei-me vós, porque cresce cada vez mais o número de poetas sobre a terra? Se a poesia não serve para nada, e se "lutar com palavras é a luta mais vã", porque milhões de poetas recomeçam essa luta "mal rompe a manhã"?
Na verdade, na verdade vos digo: há mais poetas hoje que ontem, e amanhã haverá mais poetas que hoje. E o caso da poesia é o mesmo da arte em geral. A poesia, como a arte, não morre nunca, porque mais que um género literário, é uma "função da mente humana". Ela dá voz a algo que nenhuma outra arte ou forma de expressão pode expressar por ela. E algumas, não poucas, mas milhões e milhões de pessoas têm necessidade da poesia como uma segunda "língua". Por isto cantam, por isto escrevem, por isto, pegam seu dinheirinho editam seus livros ou saem mundo afora falando seus poemas. E ao contrário da maioria das outras artes, que se transformaram predominantemente em negócio, a poesia vive uma situação ambígua: porque a palavra do poeta não se converteu em commodity e produto descartável que segue a moda e o mercado, ela guarda uma autenticidade e uma independência que a singularizam.
(...)

(excertos de artigo publicado no Jornal de Letras de 10 de Dezembro de 2003)

17.12.03

RUY CINATTI

SEGUNDO SEPTETO


VI

Relâmpago ou serpente
que escurece o ar e cala as aves.
O desespero infinito.
ou a liberdade plena.
Apenas vivo um terror branco
na pupila familiar que me condena.
Quem me rouba não me muda
em pedra ou bicho de penas.
Nem o amor, nem o dinheiro
participa dos meus planos
de paz, no estilo do sangue
ou no caminho difícil
pelos estilhaços ou pedradas:
mera condição terrena.

(de Sete Septetos, 1967)

16.12.03





Não é uma metáfora, é só um calhau.
O mar que o rodeia é só mar,
a preto e branco.


[fotografia de Gérard Castello-Lopes]
[de como num texto sobre revistas femininas, publicado numa revista de miúdos, se pode encontrar um excelente contributo para um debate sobre a sexualidade]

ADÍLIA LOPES

A minha infância acabou no dia em que a minha mãe teve uma conversa comigo sobre a menstruação. Eu tinha uns 8 anos. A minha mãe, que era bióloga, mostrou-me um dossier da "Marie Claire" em papel cor-de-rosa rugoso. Eu não sabia francês. A minha mãe guardou as páginas cor-de-rosa depois da conversa e não mas voltou a facultar. Porque será que o sexo nos faz tanto medo e tanta vergonha? José Mário Branco canta que é preciso descasar a culpa do prazer. Do prazer e da dor e, sobretudo, do corpo. porque é que o corpo e os mistérios do organismo nos nos afligem tanto? Victor Matos e Sá escreveu "...E o corpo continua por explicar". Porque é que o corpo, que é sagrado, que é templo do Espírito Santo, segundo S. Paulo, nos inspira tantas culpas? Uma coisa é sofrermos porque há um terramoto e nos caem pedras em cima, outra coisa é sermos apedrejados porque fomos condenados à morte por lapidação. Porque é que inventamos convenções sociais que causam tanto sofrimento?

(excerto do artigo Femininas Revistas, publicado na revista 365, 12 - Novembro/Dezembro de 2003 - Direcção de Fernando Alvim)
G. K. CHESTERTON

Suponho que ganhei uma mentalidade dogmática. De qualquer modo, mesmo quando não acreditava em nenhuma daquelas coisas chamadas dogmas, presumia que as pessoas se associavam em sólidos grupos por causa dos dogmas em que criam ou descriam. Supunha que os teósofos se sentavam todos numa mesma sala porque todos acreditavam na teosofia. supunha que a igreja teísta acreditava no teísmo. Supunha também que os ateus se entendiam porque não acreditavam no teísmo. Imaginava que nas Sociedades Éticas eram compostas por pessoas que acreditavam na ética, mas não na teologia nem mesmo na religião. Cheguei à conclusão que estava redondamente enganado a este respeito. Hoje, acredito que as congregações destes templos semi-seculares eram, na sua maior parte, compostas por um vasto mar de vagas de vagos incrédulos ou meio-desconfiados, com as suas dúvidas ondulantes, e que nós os podemos encontrar num domingo à cata de uma solução de proveniência teísta e logo no outro domingo de uma solução de proveniência teosófica. Podem espalhar-se por muitos de tais templos; mas o que os liga é a convenção da inconvencionalidade, que por sua vez se liga à ideia de «não ir à Igreja».

(da Autobiografia, trad. e notas de Luís de Sousa Costa, Livraria Morais editora, 1960 - Círculo do Humanismo Cristão)

15.12.03

Jorge Gabriel, hoje no seu concurso televisivo, encontra novas perpectivas para a História:

«O muro de Berlim unia as duas Alemanhas»
[para o padre Tolentino, no dia do seu aniversário]

VIRGIL GEORGHIU

Os moços, os poetas e os padres devem dizer a verdade, sem cálculos se essa verdade lhes é proveitosa ou se os leva à morte. Não se regateia a sinceridade quando se é moço, padre ou poeta.

(de O Homem que Viajou Sozinho, Bertrand editora, 1954 - tradução de Vitorino Nemésio)

14.12.03

TEIXEIRA DE PASCOAIS

Nasceu em Amarante, em 1877.
Formou-se em Direito e exerceu a advocacia.
Criou, com outros, a Renascença Portuguesa, grupo que se propôs «restituir Portugal à consciência dos seus valores espirituais próprios», na sequência da publicação da revista A Águia, de que viria a ser director literário.
Publicou mais de trinta obras.
Morreu em 14 de Dezembro de 1952, na sua casa de Pascoaes.

A história da poesia está cheia de reconhecimentos tardios. Nem sequer é pois excepção que a Teixeira de Pascoaes tenha cabido a sorte de permanecer, durante quase toda a sua vida, ignorado da maioria dos seus contemporâneos, à excepção daqueles núcleos que, em sucessivas gerações, sempre souberam reconhecer nele um dos maiores poetas portugueses. Já ele era velhinho quando a fama acabou por lhe bafejar o nome. Mas a sua poesia quase não contribuiu para tal. Deveu-a sobretudo ao seu livro em prosa sobre S. Paulo; as suas obras poéticas continuaram a ter tão pouca procura como antes, a sua poesia tão pouco eco como até aí; permaneceu um poeta «para os raros apenas», como diria o seu muito famoso contemporâneo Eugénio de Castro.
A verdade é porém que nenhum reconhecimento público poderá dar à sua poesia aquilo que ela, na sua totalidade, recusa a qualquer maioria; ele é, de facto, um poeta impopularizável a todos os títulos; o seu nome acabou por ser famoso - e talvez nem tanto... Mas a sua obra continuará desconhecida, devido àquilo mesmo que nela é essencial.
(Adolfo Casais Monteiro, A Metafísica da Paisagem: Teixeira de Pascoaes. Incluído em A Poesia Portuguesa Contemporânea, Sá da Costa, 1977)


ANTIGA DOR

O subtil, o reflexo, o vago, o indefinido,
Tudo o que o nosso olhar só vê por um momento
Tudo o que fica na Distância diluído,
Como num coração a voz do sentimento.
Tudo o que vive no lugar onde termina
Um amor, uma luz, uma canção um grito,
A última onda duma fonte cristalina,
A última nebulosa etérea do Infinito...
Esse país aonde tudo principia
A ser névoa, a ser sombra ou vaga claridade,
Onde a noite se muda em clara luz do dia,
Onde o amor começa a ser uma saudade;
O longínquo lugar aonde o que é real
Principia a ser sonho, esperança, ilusão;
O lugar onde nasce a aurora do Ideal
E aonde a luz começa a ser escuridão...
A última fronteira, o último horizonte,
Onde a Essência aparece e a Forma terminou...
O sítio onde se muda a natureza inteira
Nessa infinita Luz que a mim me deslumbrou!...
O indefinido, a sombra, a nuvem, o apagado,
O limite da luz, o termo dum amor,
Tornou o meu olhar saudoso e magoado,
Na minha vida foi minha primeira dor...
Mas hoje, que o segredo oculto da Existência,
Num momento de luz, o soube desvendar,
Depois que pude ver das cousas a essência
E a sua eterna luz chegou ao meu olhar,
Meu infinito amor é a Alma universal,
Esa nuvem primeira, essa sombra d'outrora...
O Bem que tenho hoje é o meu antigo Mal,
A minha antiga noite é hoje a minha aurora!...

(de Sempre, 1898/1902)

DE NOITE

Quando me deito ao pé da minha dor,
Minha Noiva-fantasma; e em derredor
Do meu leito, a penumbra se condensa,
E já não vejo mais que a noite imensa,
Ante os meus olhos íntimos, acesos,
Extáticos, surpresos,
Aparece-me o Reino Espiritual...
E ali, despido o hábito carnal,
Tu brincas e passeias; não comigo,
Mas com a minha dor... o amor antigo.

A minha dor está comigo ali,
Como outrora, eu estava ao pé de ti...

Se eu fosse a minha dor, com que alegria,
De novo, a tua face beijaria!

Mas eu não sou a dor, a dor etérea...
Sou a Carne que sofre; esta miséria
Que no silêncio clama!

A Sombra, o Corpo doloroso, o Drama...

(de Elegias, 1912)

V

O Poeta é um doido errando sempre além,
Que d'este mundo, em vida, se desterra...
É o ser divino e pálido que tem
Na alma toda a luz, no corpo toda a terra.

(de Cantos Indecisos, 1921)

PARAÍSOS

Temos dois paraísos: o da infância
E o da velhice;
O da flor e o do fruto,
O da loucura e o da razão.
O Jardim e o Pomar,
A Primavera, Deusa helénica,
O Outono, Deus da Ibéria.
O resto é Inverno até à Groenlândia
E Verão até ao Cabo

(de Últimos Versos, 1953)

[A Assírio & Alvim está a publicar, desde há alguns anos, a Obra de Pascoaes, em edições acompanhadas com óptimos textos para a compreensão do Poeta na sua diversidade; de referir, também, os muitos livros e textos dispersos que António Cândido Franco, também poeta, tem dedicado a Teixeira de Pascoaes, que representam um contributo de profundidade e paixão]
DANIEL FARIA

DO LIVRO PRIMEIRO DA NOITE ESCURA, DE SÃO JOÃO DA CRUZ 3


A princípio as palavras alumbram. Porque no escuro
O coração pára de correr. Secando a água
Secam os caminhos, perdem-se os companheiros
De viagem, perdem-se as casas dos vizinhos.
A noite a princípio é o homem sem casa, é o lugar
Em silêncio. É a humildade humedecendo
O corpo descalço e consumido.

A noite activa a noite - é um motor imenso
De lume. O arbusto a princípio é a própria inclinação
Da cabeça
Queimada nos cabelos, consumida em pensamentos

A princípio não se entende a sede, a inclinação, o vazio
E vamos cavando de lugar em lugar a expansão
Do arbusto que transborda. De toda a terra
à alma é a mais árida - um imenso motor em chama
Nos mecanismos da viagem ardente

A princípio não se sente
O amor - a humidade amanhecendo
O coração ressequido

(de Dos Líquidos, Fundação Manuel de Leão, 2000 - este livro foi reeditado recentemente, juntamente com outros e com poemas inéditos, pelas edições Quasi)
Senhor, que inspiraste ao vosso sacerdote S. João da Cruz um extraordinário amor à cruz e uma perfeita abnegação de si mesmo, concedei que, imitando o seu exemplo, cheguemos à contemplação eterna da vossa glória. Por nosso Senhor.

(da Liturgia das Horas)
São JOÃO DA CRUZ, presbítero e doutor da Igreja

Nasceu em Fontiveros, província de Ávila (Espanha) pelo ano de 1542. Depois de ter passado algum tempo na Ordem dos Carmelitas, foi o primeiro entre os seus irmãos de Religião que, a partir de 1568, persuadido por Santa Teresa de Ávila, se declarou a favor da reforma da sua Ordem, tendo suportado, por isso, inumeráveis sofrimentos e trabalhos.
Morreu em Úbeda, a 14 de Dezembro, no ano 1591, com grande fama de santidade e sabedoria, de que dão testemunho os seus escritos espirituais.


(...) falando agora segundo o sentido e afecto da contemplação e conhecimento das criaturas a alma vê que há nelas tanta abundância de graças e virtudes e formosura com que Deus as dotou, que lhe parece estarem todas vestidas de admirável formosura e virtude natural, derivada e comunicada naquela infinita formosura sobrenatural da figura de Deus, cujo olhar veste de formosura e alegria o mundo e todos os céus; assim como também pelo abrir de sua mão enche de bênção todos os viventes, como diz David (Salmo 144, 16). E portanto, a alma, chagada em amor por este rastro de formosura do Amado que conheceu nas criaturas, em ânsias de ver aquela invisível formosura, que esta visível formosura causou, diz a seguinte canção:

CANÇÃO VI

Ai!, quem pod'rá sarar-me?
Entrega-te, em arroubo verdadeiro;
Não queiras enviar-me
Mais nenhum mensageiro,
Que não sabem dizer-me o que requeiro.

(...)

Como se dissera: eu quero-Te todo a Ti, e eles, os mensageiros, não me sabem nem podem dizer a Ti todo; porque nenhuma coisa da terra nem do céu pode dar à alma a notícia que deseja ter de Ti, e assim não me sabem dizer o que eu quero. Em lugar destes mensageiros, sê Tu o mensageiro e as mensagens.

(a tradução das anotações é a das Obras Completas, edições Carmelo, 5ª ed: 1986; a tradução da Canção é a de José Bento em Poesias Completas, Assírio & Alvim, 1990, que inclui gravuras de Ilda David')

13.12.03

[para acalmar do delírio panfletário-esquerdista de ontem, mas também a propósito da barulheira (vinda de todos os lados) sobre o aborto...]


Veni, Creator spiritus
Mentes tuorum visita:
Imple superna gratia
Quae tu creasti pectora;

Qui Paraclitus diceris,
Donum Dei altissimi,
Fons vivus, ignis, caritas,
Et spiritalis unctio;

Tu septiformis munere,
Dextrae Dei tu digitus,
Tu rite promisso Patris
Sermone ditas guttura

Accende lumen sensibus;
Infunde amorem cordibus;
Infirma nostri corporis
Virtute firmans perpeti.

Hostem repellas longius,
Pacemque dones protinus,
Ductore sic te praevio
Vitemus omne noxium.

Per te sciamus da Patrem,
Noscamus atque Filium;
Te utriusque Spiritum
Credamus omni tempore.

[de preferência com a música de Orlandus Lassus (1532-1594)]

12.12.03

JOSÉ ALEXANDRE GUSMÃO

PEDAÇO DE MUNDO - COLÓNIA


Guarida doentia de neo-pensadores
activistas de barriguismo
(herança de tradições viciosas)
e
defraudados
que exibem maquiavelismo político

- túmulo de origem etno-geo-cultural -
empacotado no país modelo
a esportular concessões de democracia,

descambando em sacrílegas declamações
propensas de cabotinismo fácil

PEDAÇO DE MUNDO - 1/2 DE ILHA

acervo de miopias
na encenação

da incapacidade humana/impotência do solo,
paraplexia de espíritos receosos
da derrocada da aristocracia injuriosa
ou
chafurdeiros
a inquinar a mente, o raciocínio

de centenas de almas

PEDAÇO DE MUNDO - FRENTE

...luta aberta
de almas jovens

que tua decisão - mutação - responsabilidades
não decline a arroubo estéril
mas orgulho tenaz e fecundo -
complemento da intrepidez e labor do povo
e confiança no potencial,
em potencial,

inexplorado,
antes identificado improdutividade,
limitada em esmolas irrisórias
a definir degraus, em despojos irreverentes.
à mão estranha


PEDAÇO DE MUNDO - TIMOR-LESTE

Incoação vibrante
em ombro-a-ombro terra-povo,

geração ufana
suando s/ liberdade no trabalho

clamor de ordem
a emoldurar teu empenho...
Bandeira a tremular
no écran

de CRENTES e DESCRENTES

Timor-Leste, 1974

(da antologia Timor-Leste / poesia, Instituto Nacional do Livro e do Disco, Maputo, 1981)
BORJA DA COSTA

Nasceu em 1946, em Timor Leste.
Morreu no dia 7 de Dezembro de 1975, em Díli, durante a invasão.

UM MINUTO DE SILÊNCIO

Calai
Montes
Vales e fontes
Regatos e ribeiros
Pedras dos caminhos
E ervas do chão,
Calai

Calai
Pássaros do ar
E ondas do mar
Ventos que sopram
Nas praias que sobram
De terras de ninguém,
Calai

Calai
Canas e bambus
Arvores e "ai-rús"
Palmeiras e capim
Na verdura sem fim
Do pequeno Timor,
Calai

Calai
Calai-vos e calemos-nos
POR UM MINUTO

É tempo de silêncio
No silêncio do tempo
Ao tempo de vida
Dos que perderam a vida

PELA PÁTRIA
PELA NAÇÃO
PELO POVO
PELA NOSSA
LIBERTAÇÃO
CALAI - UM MINUTO DE SILÊNCIO...



O RASTO DA TUA PASSAGEM

Silenciaste minha razão
Na razão das tuas leis
Sufocaste minha cultura
Na cultura da tua cultura
Abafaste minhas revoltas
Com a ponta da tua baioneta
Torturaste meu corpo
Nos grilhões do teu império
Subjugaste minha alma
Na fé da tua religião

SAQUEASTE
ASSASSINASTE
MASSACRASTE
ESPOLIASTE
PILHASTE

Minha terra, minha gente
Banhada em sangue
Escorraçada, exangue

Barbaramente civilizaste na demagogia da tua grei
Brutalmente colonizaste na ambição da tua grandeza

Na ponta da tua baioneta
Assinalaste o rasto da tua passagem
Na ponta da minha baioneta
Marcarei na História a forma da minha
LIBERTAÇÃO.


(da antologia Timor-Leste / poesia, Instituto Nacional do Livro e do Disco, Maputo, 1981)
JOSÉ AFONSO

OS FANTOCHES DE KISSINGER


Em toda a parte baqueia
A muralha imperialista
Na ponta duma espingarda
Os povos da Indochina
Varrem da terra sangrenta
Os fantoches de Kissinger

Mas aqui também semeias
No pátio da tua fábrica
No largo da tua aldeia
A fome, a prostituição
São filhas da mesma besta
Que Kissinger tem na mão

Valor à Mulher Primeira
Na luta que nos espera
Só não há vida possível
Na liberdade comprada
Na liberdade vendida
A morte é mais desejada

A NATO não chega a netos
Abaixo o hidrovião
Na ponta duma espingarda
O Povo da Palestina
Mandou a Golda Meir
Uma mensagem divina

Da CIA não tenhas pena
Tem carne viva nas garras
É a pomba de Kissinger
Toda a América Latina
Se lembra das suas farras
A mesma tropa domina

A mesma tropa domina
Só um é embaixador
Mas nada nos abalança
A dormir sobre a calçada
Faz como o trabalhador
Dorme sobre a tua enxada

Faz como o atirador
Dorme sobre a espingarda

(do álbum Com as Minhas Tamanquinhas, 1976)
O Tchernignobyl, colaborador do BdE, escreveu, no dia 7 deste mês, dois apontamentos sobre Henry Kissinger, vencedor do prémio Nobel da Paz em 1973. No primeiro fala do curriculum invejável do "diplomata" e pouco depois dá o exemplo da "democrática" atenção que teve com Videla, na Argentina.
Ora fazia nesse mesmo dia 28 anos que Kissinger estava em visita de "negócios" a Jacarta, enquanto uma força de pára-quedistas consumava a anexação do que viria a ser considerado (indevidamente, claro) a "27ª província da Indonésia" - Timor Leste.
De seguida fica a evocação do tal "promotor da paz" feita por Zeca Afonso, num tempo em que não havia correcções políticas e em que os blogues eram também em vinil, bem como uns poemas timorenses bem marcados pela época.

11.12.03

HENRI MICHAUX

Passagem.
O gosto de ocultar venceu. Venceram a reserva, a prudência, a discrição natural, a instintiva tendência chinesa para apagar vestígios, para evitar encontrar-se a descoberto.

O prazer de manter escondido venceu. Assim a escrita passou a estar ao abrigo, passou a ser um segredo; segredo entre iniciados.

Segredo difícil, longo, custoso de partilhar, segredo para fazer parte de uma sociedade. Círculo que durante séculos e séculos vai permanecer no poder. Oligarquia dos subtis.

(excerto de Idéogrammes en Chine, 1986 / Ideogramas na China, livros Cotovia, 1999 - Série Oriental - tradução de Ernesto Sampaio)
os anjos e a escada rolante do centro comercial

Na sequência de um almoço que não paguei (e não agradeci...), o Tiago compara-me a um anjo "Com quase tantas qualidades quanto Gabriel". Fico tão encavacado (hehe) como ele ficaria se eu lhe mandasse o mesmo piropo.

Depois do almoço o Tiago confessa-me que conhecia pouca coisa do Chesterton, mas no entanto não tenho dúvidas de que o seu "estilo" (à falta de melhor termo...) é pertinentemente chestertoniano, o que foi confirmado, numa escada rolante, por um outro amigo, que entretanto aparecera.

9.12.03

ANDRÉ BRETON

De Rimbaud, em 1913, só conhecia algumas peças de antologia. Ignorava ainda a sua famosa fórmula de rejeição:"A mão de caneta vale a mão de charrua. Que século de mãos! Nunca terei a minha!" Por meu lado, não era menor a repugnância que sentia por todas as "carreiras", incluindo a de escritor profissional. "Horror de todos os ofícios", insistirá Rimbaud...

Para si, alguma coisa se salva nessa época?

Salva-se o que a poesia e a arte puderam produzir de mais raro (...)

(de uma conversa radiofónica com André Parinaud, em 1952, incluída em Entrevistas, edições Salamandra, 1994)
MANUEL DE FREITAS

A poesia é uma realidade histórica, queiramos ou não.

(do prefácio a poetas sem qualidades, Averno, 2002)
GERARDO DIEGO (1896-1987)

No debemos huir de nada. El arte se ha de hacer buscando, reuniendo, integrando. Hacemos decimas, hacemos sonetos, hacemos liras, porque nos da la gana. Magnífica razón, única plena del artista. Pero hay una diferencia con nuestros razonables abuelos del XVIII. Para ellos, la estrofa, la sonata o la cuadrícula eran una obligación. Para nosotros, no. Hemos aprendido a ser libres. Sabemos que esto es un equilibrio, y nada más.

(citado por Pedro C. Cerrillo, em Antología Poética del Grupo del 27, ediciones Akal, 2002)

8.12.03

G. K. CHESTERTON

Eu sempre abriguei o sentimento confuso de que havia alguma coisa de sagrado na raça inglesa, ou na raça humana, e isso me separava do pessimismo da época. Nunca duvidei que os seres humanos no interior das casas eram eles próprios quase milagrosos, como bonecas mágicas e talismânicas dentro de horríveis caixas de bonecas. Para mim, aquelas caixas de tijolos castanhos eram realmente caixas com presentes de Natal. Porque, além do mais, as caixas de Natal vêm muitas vezes embrulhadas em papel pardo. E as obras de tais construtores baratos, feitas de tijolos castanhos, eram muitas vezes semelhantes a papel pardo.

(da Autobiografia, trad. e notas de Luís de Sousa Costa, Livraria Morais editora, 1960 - Círculo do Humanismo Cristão)
SERVIÇO METEOROLÓGICO PARISIENSE NA BLOGOLÂNDIA

A semana passada estavam 3 graus constantemente. Hoje ficamos a saber que -5° C é a temperatura lá fora, o que coincide com estão temperaturas negativas lá fora.
Cardeal ALEXANDRE DO NASCIMENTO

Nasceu em Malanje, Angola, em 1925.
Ordenado presbítero em 1952 e bispo em 1975.
Foi bispo de Malanje e de Lubango e, desde 1986, é Arcebispo de Luanda, sendo emérito desde 2001.
Foi feito Cardeal em 1983, na sequência do rapto a que foi sujeito no ano anterior.

MAMÁ MUXIMA

Na Polónia florida e na terra dos Bascos
Na terra dos Teutões e na Tíndari dos Sículos,
Na Suíça polida e na Itália gentil,
Em muita outra parte, é pura verdade
Que é como preta que a Virgem veneram.

Bem sei que Murillo o impossível pintou,
E que Velasquez, o divino, de Rafael é rival.
Quem não viu em Madrid, quem não viu em Florença,
Milagres de pintura, assombros de cor?
Mas vê como passa essa turba fastienta
Diante de um retábulo de tanto requinte!
Parece sonâmbula, pensa noutra coisa,
Tem o sorriso frio de gente sabedora:
É gente erudita que leu Kant, conhece Espinosa...
Do que não suspeita, por certo, é que tem
a alma defunta...

Outra coisa é este meu povo, este povo sofredor
Gente do "mato" e do chimbeco em Luanda,
- A Velha Mutudi, a tia Ximinha;
Gente que ri, porque sabe o que é chorar;
Gente que cumprimenta, porque sabe o que é desprezo,
Gente que reza e finge zanga à Senhora.
Mas é certo e seguro, nem posso duvidar
Que tem amor, muito amor consigo esta gente.
Há nela essa fé que o Senhor diz fazedora de milagres.

Entre a Virgem do céu e este povo que sofre
Há funda amizade, há infinda ternura
Por isso eu não me rio, nem estranho sequer
Quando vejo gritar, simular grande zanga
Se tarda o milagre, ó Virgem Senhora!

Elas sabem como tomar-Te, entendem-Te tão bem!
Como roçam as mãos e os rostos também
No Teu manto bendito, bendita Mãe!
Pois é este povo que não estranha
Que sejas branca e também sua Mãe!
Mas sou eu quem Te faz a pergunta:
Porquê és assim?
Preta bem preta, nas terras dos brancos,
Branca bem branca na terra dos pretos!
- Não vês, meu filho, que vos quero lembrar
Que sois todos meus, meus pequeninos?
Assim vos não esqueçais que brancos ou pretos
Tendes a vossa Mãe que também é Morena:
Branca muito branca, na terra dos Pretos,
Preta bem preta, na terra dos Brancos:
O que conta para mim não é a cor,
Basta-me o coração: "Muxima!".


DISCRETA E TERNA

Discreta e terna há-de envolver-me
a luz terna do Teu olhar,
Senhora a Quem tantas vezes eu disse
"Ave Maria, cheia de graça":
que Tua presença me não falte
nessa hora, nesse instante.
És a Virgem fiel - a que mantém as promessas,
por isso, Tu cumprirás a promessa:
cumprirás, porque cá me diz o coração: "Mãe!"

Virás, assim, à beira do meu leito,
ou onde quer que a vida me comece a abandonar,
"Santa Maria, Mãe de Deus".
Olhar vago, talvez ardendo em febre,
talvez então nem de Ti eu me lembre,
ó meu Amor de sempre...

"Rogai por nós, pecadores".

Sei, porém, - mais: tenho a certeza
que foi por minha causa
que o Senhor orou: "Nas Tuas mãos,
Pai, entrego a minha alma..."

Desde então, é certo,
sempre que o poente da vida
crisma a fronte de um homem,
vibra intenso, como no Calvário,
o brado saído do coração de Deus:
"Mulher, aí tens o Teu filho".

Discreta e terna há-de envolver-me
a luz terna do Teu olhar.
Estreitando-me junto ao Teu peito virginal,
dirás então aos Anjos em êxtase:
"Um menino nos acaba de nascer..."

Há-de sorrir Isaías.
E Deus, também.

(de Livro de Ritmos, Gráfica de Coimbra, 1994)
[mais um na blogolândia]

JACINTO LUCAS PIRES

[primeiro parágrafo de]
Sombra e Luz

À minha frente estava um homem com duas caras. O comboio atravessava a noite escura. Uma cara olhava-me do vidro, por dentro dela passavam quintais, luzes, casas negras, pessoas, luzes, árvores de braços cortados, luzes, a outra, que o homem tinha sobre o pescoço, via o que lá fora era de ver. Os dois olhares, não sei como, não se cruzavam. Era estranho aquilo. O reflexo era mais real do que a coisa reflectida. Pensei então que o homem era feio. Tinha as sobrancelhas muito grossas e juntas, o nariz torto, a boca indecisa, a barba mal feita, os cabelos grisalhos. A seguir pensei que era bonito. Olhava-me.
(...)

(de Para Averiguar do seu Grau de Pureza, livros Cotovia, 1996)

7.12.03

[gosto muito de inventários XXXII]

São PAULO

(...) em tudo recomendamo-nos como ministros de Deus: por grande perseverança nas tribulações, nas necessidades, nas angústias, nos açoites, nas prisões, nas desordens, nas fadigas, nas vigílias, nos jejuns, pela pureza, pela ciência, pela paciência, pela bondade, por um espírito santo, pelo amor sem fingimento, pela palavra da verdade, pelo poder de Deus, pelas armas ofensivas e defensivas da justiça, na glória e no desprezo, na boa e na má fama; tidos como impostores e, não obstante, verídicos; como desconhecidos e, não obstante, conhecidos; como moribundos e , não obstante, eis que vivemos; como punidos e, não obstante, livres da morte; como tristes e, não obstante, sempre alegres; como indigentes e, não obstante, enriquecendo a muitos; como nada tendo, embora tudo possuamos!

(2ª Carta aos Coríntios, 6, 4-10)
[gosto muito de inventários XXXI]

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

FELICIDADE


Pela flor pelo vento pelo fogo
Pela estrela da noite tão límpida e serena
Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo
Pelo amor sem ironia - por tudo
Que atentamente esperamos
Reconheci tua presença incerta
Tua presença fantástica e liberta

(de Livro Sexto, 1962)
[Neruda a fazer inveja a Carlos Tê...]

PABLO NERUDA

A areia


Estas areias de granito amarelo são privativas, insuperáveis. (A areia branca, a areia negra, aderem à pele, ao fato, são impalpáveis e intrusas.) As areias douradas de Isla Negra estão feitas como pequeníssimos penhascos, como se proviessem de um planeta demolido, que ardeu longe, lá em cima, remoto e amarelo.
Toda a gente atravessa a margem arenosa agachando-se, e procurando, remexendo, a tal ponto alguém chamou a esta costa «a Ilha das Coisas Perdidas».
O oceano é incessante fornecedor de pranchas carcomidas, bolas de vidro verde ou bóias de cortiça, fragmentos de garrafa enobrecidos pelas ondas, detritos de caranguejos, búzios, lapas, objectos devorados, envelhecidos pela pressão e pela insistência. Existe espinhas quebradiças ou ouriços minúsculos ou patas de navalheira roxa, o serpentino cochayuyo, alimento dos pobres, alga interminável, e redonda como uma enguia, que resvala e brilha, sacudida ainda na areia pela onda reticente, pelo oceano que a persegue ainda. E já se sabe que esta planta marinha é a mais comprida do planeta, crescendo até quatrocentos metros, presa como um titânico ramo parasita à penedias, sustentando-se como uma divisão de bóias que sustêm a cabeleira da alga macrocristis com milhares de pequenas tetas de âmbar. E como no território andino voa o condor e sobre o mar chileno se reúnem planando todas as famílias do albatroz e como o cachalote ou baleia dentada submergiu nas nossas águas e aqui sobrevive, somos uma pequena pátria de asas muito grandes, de cabeleiras muito longas sacudidas pelo grande oceano, de presenças sombrias nos porões do mar.

(de Una Casa en la Arena, 1966 / Uma Casa na Areia, publicações Dom Quixote, 1998 - tradução de Fernando Assis Pacheco)
[gosto muito de inventários XXX - com um agradecimento à Sandra]

CARLOS TÊ

INVENTÁRIO


Um pneu Michelin, um tampo de fórmica, uma
camurça, um gato morto, um sifão de autoclismo,
uma lata de Sheltox, dois tampaxes, uma garrafa
Três Marias, duas cotonetes, um colchão, um
espelho de alumínio anodizado marca Corsino,
um feto, um frasco de mokambo, um calendário
plastificado da Obra Salesiana com o Sagrado
Coração de Jesus, uma tainha, um cagalhão, uma
Barbie decepada, dois preservativos, três algas,
um Tantum verde, uma embalagem de natas
Agros, uma placa de esferovite, uma diskete TDK,
uma maçã Starking, um disco da Orquestra do
Ray Connitt, uma golfada de nafta e água, muita
água. De onde virá tanta água?

(de penso sujo, in-libris, 2003)
[gosto muito de inventários XXIX]

GLORIA FUERTES

- Hornillos eléctricos brocados bombillas
discos de Beethoven sifones de selt
tengo lamparitas de todos los precios,
ropa usada vendo en buen uso ropa
trajes de torero objetos de nácar,
miniaturas pieles libors y abanicos.
Braseros, navajas, morteros, pinturas.
Pienso para pájaros, huevos de avestruz.
Incunables tengo gusanos de seda
hay cunas de niño y gafas de sol.
Esta bicicleta aunque está oxidada es de buena marca.
Muchas tijeritas, cintas bastidor.
Entren a la tienda vean los armarios,
tresillos visillos mudas interiores,
hay camas cameras casi sin usar.
Artesas de pino forradas de estaño.
Güitos en conserva,
óleos de un discípulo que fue de Madrazo.
Corbatas muletas botas de montar.
Maniquíes tazones cables y tachuelas.
Zapatos en buen uso, santitos a elegir,
tengo santas Teresas, San Cosmes y un San Bruno,
palanganas alfombras relojes de pared.
Pitilleras gramófonos azulejos y estufas.
Monos amaestrados, puntillas y quinqués.
Y vean la sección de libros y novelas,
la revista francesa con tomos de Verlaine,
con figuras posturas y paisajes humanos.
Cervantes Calderón el Óscar y Papini
son muy buenos autores a duro nada más.
Estatuas de Cupido en todos los tamaños
y este velazqueño tapiz de salón,
vea qué espejito, mantas casi nuevas,
sellos importantes, joyas...

(de Obras incompletas, Madrid: Cátedra, 1975 - gentilmente cedido pelo amigo Ferran)

6.12.03

[mais um que se apercebeu do sagrado do mundo no olhar de um transeunte]

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

Calle Principe, 25


Perdemos repentinamente
a profundidade dos campos
os enigmas singulares
a claridade que juramos
conservar

mas levamos anos
a esquecer alguém
que apenas nos olhou

(de Baldios, Assírio & Alvim, 1999)
S. S. KHARKIANÁKIS

é bispo da Igreja Ortodoxa Grega de Sydney, Austrália.


Intensive care

A poesia, irmã, não é
Nem canção, nem reflexão.
Poesia é «cuidado intensivo»
Aplicado à criação em sangue
E sobretudo registo
De como a vida conduz à morte.


O cidadão de hoje

As relações com os semelhantes
Tornaram-se tão complicadas
Que as únicas actividades que não exigem conselho jurídico
São os desmaios, o enjoo e as lágrimas.


O humanismo das árvores

As árvores fiéis ficam onde as plantamos
Derrotam a inércia da morte
Absorvem a distância com uma constância sem falhas
Com todo o seu corpo bandeira rumorejante
Ralham aos bichos pelos seus
Movimentos sem rumo.


Antropocentrismo

O sagrado do mundo não está contido
Na história do Génesis
Pois ninguém a viveu
Nem estamos obrigados a cálculos devotos.
O sagrado do mundo é função
Duma dor vivida que não se pode registar
Num diário pessoal nem numa obra de arte
Pois não dispomos de instrumentos para tal.
O sagrado do mundo apercebi-o
Fitando o profundo olhar dum transeunte
Que ia sendo atropelado
Ao passar distraído na passadeira.

(in Di Versos, 6 - Outono de 2001 - tradução de Manuel Resende)
Ontem, no Telejornal, um octogenário de Castelo Branco, a quem a polícia apreendeu um arsenal bélico de fazer inveja a um pequeno exército, declarava com o maior à-vontade e com um sorriso na cara:

"Não há nenhuma lei que proíba um cidadão de cometer crimes."

5.12.03

TAMARA KAMENSZAIN

Nasceu em Buenos Aires, Argentina, em 1947.
Começou a publicar em 1973.
É um dos nomes mais significativos da poesia argentina contemporânea.

ESCUDO DE DAVID

Debaixo de sua boina negra
há um teto inflamável
turbulências
as nuvens vermelhas do trópico
flamejam acaloradas
a meio pau sobre Havana Velha
onde ninguém sabe dizer
onde repousam os restos
o que resta de mim
me deixa à mercê
de meu próprio mausoléu
puta
detida sobre seus pés
não espero por ninguém
e insisto que alguém
tem que chegar
um messias
sobre sua boina negra ladeado
o olho da tempestade
o manto celestial que arranque
pontas estreladas
dos óculos de Trotsky
estilhaços de um herói que se estampa
entre o peito e as costas
uma camiseta ferida
vale como escudo.


ANTEPASSADOS

Aonde vão?
Vou com eles descendo de meus filhos
até onde queiram chegar astros circulantes
se na hora do nascimento calcularam ascendente
não o abandonem mais.
Do Mar Negro até o Estreito
naturalizam-se comigo de mim procedem
meninos de sobrenome decomposto
viajando para ser argentinos
imigrantes por vomitar no convés
dando voltas eles nos voltam
como vinil arranhado dos beatles
da Rússia para cá
e daqui para a URSS que foi
donos de um deserto que avança
bisavós do nada.


MURO DAS LAMENTAÇÕES

Uma pasta vazia
sobre a mesa vela os restos
Com o quê escrever agora?
Resta apenas
o alefbet que com a ponta de mármore
anota nome e data
em outro mundo.
Cega, leiga, analfabeta,
que eu não bata a cabeça
contra a tumba imponente
dessa parede.

(de O gueto, Moby-Dick, 2003 - tradução de Carlito Azevedo e Paloma Vidal - este livrinho está a ser distribuído juntamente com o último número da revista Inimigo Rumor)
NELLY SACHS

Nasceu em Berlim, em 1891.
Começou a publicar em 1921 e recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1966.
Morreu em 1970.

MÃOS
Dos jardineiros da Morte,
Que da macela do berço,
Que medra nas várzeas duras
Ou na encosta,
Fizeste nascer morte, o monstro de estufa do vosso ofício.
Mãos,
Que arrombais o tabernáculo do corpo,
Filando como dentes de tigre os sinais dos mistérios -
Mãos,
Que fizestes vós,
Quando éreis as mãos de crianças pequenas?
Pegastes numa gaita de beiços, nas crinas
Dum cavalo de baloiço, agarrastes a saia da mãe no escuro,
Apontastes pra uma palavra na cartilha -
Era talvez Deus, ou Homem?

Ó mãos degoladoras,
Morreu a vossa mãe,
A vossa mulher, o vosso filho?
Pra manterdes assim só a morte nas mãos,
Nas mãos degoladoras?

(de Nas Moradas da Morte / In den Wohnungen des Todes, Berlim, 1946)


MÃE DE LUTO

DEPOIS DO DESERTO do dia,
no deserto do entardecer,
sobre a ponte q o amor
com lágrimas construiu sobre dois mundos,
veio o teu menino morto.
Todos os teus caídos castelos no ar
os cacos dos teus palácios devorados pelas chamas,
cânticos e bênçãos
desmoronados no teu luto,
cintilam à volta dele como um castelo
que a morte não conquistou.

A sua boca orvalhada de leite,
a sua mão que se adiantou à tua,
a sua sombra na parede do quarto
uma asa da noite,
com a lâmpada extinta regressando a casa -
na praia para Deus
espalhado como cibo pra pássaros num mar
o som do eco da prece de criança
e o beijo caído por sobre o debrum do sono -
Ó mãe de lembrança,
nada mais é teu
e tudo -
pois as estrelas cadentes buscam
através dos campos de papoilas do esquecimento
no seu caminho de regresso o teu coração,
pois todo o teu conceber
é dor desamparada.

(de Escurecer as Estrelas / Sternverdunkelung, Amsterdão, 1949)


MAS DE NOITE,
quando os sonhos c'uma lufada de ar
levam paredes e tectos de quartos,
começa a peregrinação pra os mortos.
Sob o pó de estrelas os procuras -

A tua saudade vai construindo a irmã -
dos elementos que a mantêm escondida
traze-la cá pra dentro
até que ela respira no teu leito -
mas o irmão vai dobrar a esquina
e o esposo regressou já muito alto
então a humildade faz-te emudecer -

Mas depois - quem interrompeu a viagem -
começa o regresso -
Como os queixumes das criancinhas
assustadas co'a Terra
estás tu -
a morte dos mortos abateu-se
c'o tecto do quarto -
protectora jaz a minha cabeça sobre o teu coração
o amor - entre ti e a morte -

Assim chega o crepúsculo
espalhado co'a semente rubra do Sol
e a noite desfez-se em lágrimas
dia dentro -

(de Terra de Israel / Das Leiden Israels, Francoforte do Meno, 1964)


Escuro ciciar do vento
na seara
A vítima pronta ao sofrimento
As raízes estão caladas
mas as espigas
sabem muitas línguas maternas -

E o sal no mar
chora na distância
A pedra é uma existência de fogo
e os elementos puxam pelas cadias
pra a união
quando a escrita espectral das nuvens
recolhe imagens primevas

Mistério na fronteira da morte
«Põe o dedo nos lábios:
Silêncio Silêncio Silêncio» -

(de Enigmas em Brasa / Gluhende Ratsel, incluído em Spate Gedichte, Francoforte do Meno, 1965)

(poemas incluídos em Poemas de Nelly Sachs, antologia, versão portuguesa e introdução de Paulo Quintela, Portugália, 1966)
YEHUDA AMICHAI

é um poeta e novelista. Grande parte da sua obra foi traduzida para outros idiomas, assim como a sua novela Não desta época, Não deste lugar. Em 1982, recebeu o Prêmio Israel de Poesia.
[Como já foi dito, há mais informações no Quartzo]


NOS MONTES DE JERUSALÉM

Aqui onde a ruína anseia reerguer-se,
Seu desejo é agregado ao nosso.
Mesmo os espinhos, cansados de ferir,
Querem consolar.
E a lápide, arrancada de uma sepultura profanada,
Foi colocada na nova muralha, com seu nome e suas datas.
E alegra-se, porque não será esquecida.
E as crianças, as únicas que poderiam tudo mudar,
Brincam entre rochas e ruínas.
Elas nada querem modificar.

O cancelamento de uma noite de amor no Neguev
Faz nascer uma flor nos montes de Jerusalém.
Coisas se esvaziam e se enchem,
E nem sempre você está entre as que se enchem.
E o tomilho, nem sempre cura,
Mas rasga uma profunda ferida no esquecimento,
Recordação de uma sede antiga.

Todos aqui se ocupam da tarefa de lembrar.
A ruína se lembra, se lembra o jardim,
O poço recorda suas águas e o bosque, que o plantaram,
Lembra-se, na laje de mármore, um holocausto distante
Ou mesmo, somente o nome de um doador morto,
Para que seja lembrado um pouco mais que os outros.

Mas nomes não são importantes nestes montes.
Como no cinema, quando da lista de participantes na tela
Antes do filme, ela ainda não é interessante; e no fim do filme -
Já não o é mais. Acendem-se as luzes, as letras se dissolvem
E desce a ondulada cortina, as portas são abertas e do lado de fora é noite.

Para esses montes somente o verão e o inverno são importantes,
Somente o seco e o molhado: e até mesmo as pessoas
São meros receptáculos da água dispersa em volta,
Como poços e cisternas e fontes.


NAS LARGAS ESCADAS - A POSTOS À ESPERA DA FELICIDADE

Nas largas escadas que descem para o Muro das Lamentações
Uma linda mulher me apareceu: "Você não se lembra de mim,
Eu sou Shoshana, em hebraico. Sou outra em outras línguas.
É tudo futilidade".
Assim disse ela na hora do crepúsculo, de pé entre o destruído
E o em construção, entre a luz e a escuridão.
Pássaros negros e pássaros brancos trocavam lugares
Ao compasso intenso da respiração.
A luz das câmeras dos turistas iluminou também a minha memória:
O que faz você aqui entre o prometido e o esquecido,
Entre o esperado e o imaginário?
O que faz você aqui à espera da felicidade,
Com seu lindo rosto de garota-propaganda do turismo de Deus,
E sua alma dilacerada e rasgada como a minha?

Ela me respondeu: Minha alma está dilacerada e rasgada como a sua
E é isso que a faz bonita,
Como uma fina renda.


O MOINHO EM YEMIN MOSHE

Este moinho jamais moeu farinha.
Ele moeu ar santo e os pássaros
da saudade de Bialik, ele moeu
palavras e tempo triturado, ele moeu
chuva e até mesmo bombas,
mas ele jamais moeu farinha.

Agora ele nos descobriu,
E mói a nossa vida, dia a dia,
fazendo de nós farinha da paz,
fazendo de nós o pão da paz
para as gerações futuras.


UM PASTOR ÁRABE PROCURA UM CABRITO NO MONTE SION

Um pastor árabe procura um cabrito no Monte Sion,
E no monte em frente eu procuro por meu filho pequeno.
Um pastor árabe e um pai judeu
Ambos no seu temporário fracasso.
Nossas vozes se encontram sobre
A piscina do Sultão, no vale entre nós.
Nenhum de nós quer que o filho e o cabrito
Entrem no terrível processo
Da música da Páscoa "Um Cabrito".*

Depois achámo-los entre os arbustos,
E nossas vozes retornaram a nós
E choraram e riram por dentro.

As buscas de um cabrito ou de um filho
Foram sempre
Começo de uma nova religião nestes montes.

_______________________________________

* Uma cantiga infantil cantada no encerramento da Páscoa dos judeus, com o propósito de ilustração moral, mostrando como os opressores dos judeus, através da História, foram destruídos pela divina retribuição por terem perseguido o "um cabrito" - o Povo Judeu.

(Apresentação do Autor, poemas e nota publicados em ariel - Revista de Artes e Letras de Israel, 1983 - edição especial para língua portuguesa, recolhendo textos da edição normal - tradução de Clara Rosenberg)
PEQUENA EXPLICAÇÃO E AGRADECIMENTOS

Os poemas que aqui publiquei ontem iniciam uma sequência que se pretende multi-religiosa e que parte de uma espécie de preparação que fiz para o encontro de que falei anteontem.

Por feliz coincidência, no regresso, constatei que no Quartzo publicaram um dos poetas que fazia parte dessa escolha, Yehuda Amichai, de quem eu só conhecia os poemas e a referência que publicarei de seguida. O Quartzo dá muito boas pistas para conhecer este poeta e publica uma tradução inédita de Miguel Gonçalves.

Também o Quartzo fez, entretanto, uma referência aos poemas de ontem
Também o amigo catalão Ferran, me refere, oferecendo-me um inventário de Gloria Fuertes e ainda um novo amigo galego, que partilha a admiração por Chesterton.

Enquanto estive fora houve ainda uma outra referência feita pelo Miguel da Cibertúlia, a propósito do Ivan, que lamenta conhecer poucos católicos.

4.12.03

HASSAN ABDALLAH AL-QORACHI

Nasceu em Meca, Arábia Saudita, a 12 de Dezembro de 1934. fez os estudos liceais em Fellah e, depois, com interrupções, frequentou a Universidade, em Ryadh, onde seguiu cursos de História.
Após trabalhar no Ministério das Finanças e na Rádio, e com Embaixador do seu país no Sudão e na Mauritânia, Al-Qorachi consagra-se às viagens e à poesia.
Publicou mais de uma dezena de livros, entre os quais Cor dos Sorrisos, Música Azul, O Lago da Sede e, por último, A Vagabundagem das Caravanas...
O poema antologiado pertence a O Lago da Sede.


PARA QUEM A GLÓRIA

A glória, nesta vida, é para quem paga os seus dias
com tudo o que possui
com pão, com alegria e com sangue
para quem espalha as suas dádivas e dissipa os perfumes
d'alma, do coração que escorre, gota a gota,
do incêndio das dores
A pura glória desta vida é só para quem morre
por um princípio, uma ideia
uma mão-cheia de terra
pelo canto de um pássaro nos jardins amáveis
por uma mulher com o rosto banhado em lágrimas
um sorriso furtivo nas rugas do pai
um chilreio nos lábios da criança
pelo riso do rio
uma tenda que os ventos açoitam de noite
a brotar de uma planta na encosta da montanha


(Versão de Muhammad Abdur Rashid Barahona)

(Apresentação do Autor e poema publicados em O Selo - Revista de Cultura Islâmica e Universal nº 3, 11 de Janeiro 1994 / 28 de Rajab 1414)
ABDEL KARIM AKKUM

Poeta algeriano, nascido em 1915 e morto no decurso da revolução em 1959. a sua poesia tem um recorte clássico e versa, além dos trágicos acontecimentos da sua época, temas de meditação sobre a Natureza (o Livro de Deus escrito no visível).
Escolhemos este poema de Abdel Karim, mártir do colonialismo de outrora, em homenagem aos mártires de agora, vítimas de uma minoria de algerianos, que se afastou do Islame e tenta manter, a preço de morte e encarceramento, esquemas políticos e sociais, importados da Europa e em tudo estranhos e adversos à tradicional cultura islâmica do país.


O OCEANO

Eis-me na tua companhia. Diálogo deslumbrante.
Ó oceano! escuta bem este meu canto!
Nós somos dois a misturar os nossos ritmos harmoniosos.
Na vastidão desértica da vida árida
Só tu és meu amigo.
Bastou-me contemplar tua beleza
E logo minha alma triste se alegrou.
E mais do que a presença d'amigos dilectos
Tua presença a solidão preenche nos meus pensamentos.
Tu existes, sim, tu existes, e tal não é suficiente
Para desvanecer, da minha vida, a angústia?
Dize-me, há em ti remédio para as minha feridas?
É em ti que reside a liberdade fora do obscuro?
Ou, por outra, será que tu e eu estamos ambos ligados
À fatal alternância do dia e da noite?
Hoje, ficarei junto de ti até anoitecer.
Eis que te trago a minha esperança, peço-te protecção.
Eu canto o grande movimento da tua música, o espectáculo
Eterno d'altas vagas que se quebram e, muito ao longe, o teu eco legião.

Da beleza tu foste, para nós, o receptáculo. Desde então,
Sem cessar, proclamamos o teu nome.
Tu és eternamente o mistério genitor
D'orgulho e da grandeza.
Harpa de majestade, ó esplendor que explodes,
Meu canto esgota-se ao contacto dos teus sons!
Fonte viva de água vívida, onde a inspiração vem beber os versos,
Fonte fecunda e fixa além d'imensidão,
Tu repousas em paz, quando o vento amaina a sua rápida loucura,
Ou abrasada em fogo, a falar em chamas,
Tu não temes o vento, quando ele ribomba
Como um trovão por sobre a tua espuma,
Quando as nuvens são almofadas pretas a tapar o horizonte
E quando a noite circunscreve a matéria viva à sua face.

Mas, onda após onda, cais enamorado das raparigas
Belas, nuas, de seios rutilantes como estrelas cadentes
No azulíssimo cerúleo da tua água salgada.
Com a tua beleza se enfeitam e paramentam os seios.
Sobre ti, se debruçam, espelho mágico,
Onde cintila, em colares infinitos, o mar dos seixos rolados.


(Versão de Muhammad Abdur Rashid Barahona)

(Apresentação do Autor e poema publicados em O Selo - Revista de Cultura Islâmica e Universal nº 2, 11 de Julho 1993 / 21 de Muharram 1414)

3.12.03

Lord ROBERT BADEN-POWELL

Não há qualquer lado religioso do Movimento [escutista]. Ele é todo baseado na religião, isto é, na compreensão e no serviço de Deus.

(in Headquarter's Gazette, Novembro de 1920)


Pediram-me que descrevesse mais pormenorizadamente o que tinha em mente a respeito da religião quando instituí o Escutismo e o Guidismo. Perguntaram-me: «Onde é que entra a religião?»
Pois bem, eis a minha resposta: «Não entra em parte nenhuma. Já lá está. É o factor fundamental subjacente ao Escutismo e ao Guidismo».
[...]
A religião não é uma ciência reservada aos que têm estudos, de outra forma apenas aproveitaria aos eruditos e aos intelectuais, e estaria fora do alcance dos pobres; também não é uma feitiçaria, pois dessa forma apenas se apoderaria dos caracteres mais fracos, dos emocionais e dos supersticiosos.

(de uma alocução à Conferência de Comissários do Escutismo e do Guidismo, em 2 de Julho de 1926)


Para os mais novos, digo: Avancem com Esperança, misturem-na com optimismo e temperem-na com o sentido de humor que vos torna capazes de enfrentar as dificuldades conservando o sentido das proporções. Avancem com Fé, na sensatez, na segurança e no vigor do Movimento e das futuras possibilidades, e avancem com Amor, que é o mais poderoso de todos os agentes. Este espírito de amor é, afinal, o espírito de Deus trabalhando convosco.

(in The Scouter, Dezembro de 1937)


O respeito para com Deus, o respeito pelo próximo e o respeito por nós próprios como servos de Deus, está na base de todas as formas de religião.

(in Aids to Scout mastership, 1944)


Podem surgir muitas dificuldades sobre a definição da formação religiosa no nosso Movimento, onde existem tantas confissões diferentes, e os pormenores da expressão dos deveres para com Deus têm, por isso, de ficar em grande parte ao arbítrio da autoridade local. Mas insistimos na observância e na prática da religião professada pelo rapaz, qualquer que ela seja.

(in Aids to Scout mastership, 1944)

[citações retiradas de O Rasto do Fundador, CNE publicações, 1986 - compilação de Mario Sica, tradução de José Francisco dos Santos e João Paulo Leandro Feijóo]
CONCÍLIO VATICANO II

Sendo assim tão grande o património espiritual comum aos cristãos e aos judeus, este sagrado Concílio quer recomendar e fomentar entre eles o mútuo conhecimento e estima, os quais se alcançarão sobretudo por meio dos estudos bíblicos e teológicos e com os diálogos fraternos.

(da declaração conciliar Nostra Aetate: A Igreja e as Religiões não Cristãs, 1964)

[um Rabino presente no encontro em que estive recordou este texto e sugeriu que pensássemos nele alargado a todas as religiões e respectivos escritos sagrados]
Cheguei ontem de Valência, onde estive a participar num encontro inter-religioso de escuteiros.
Foi muito bom.
O facto de termos estado 115 pessoas de várias religiões a debater assuntos que interessam a todos resultou, penso eu, devido ao facto de todos sermos escuteiros. Ou seja: há uma realidade comum, de grande importância, que relativiza questões que nos poderiam afastar ou criar conflito ninguém tentou converter ninguém nem ninguém disse como os outros se deveriam comportar.

Prefiro criar amigos do que criar consensos.

28.11.03

TIMOR: UMA CASA PARA CONSTRUIR

Faz hoje 27 anos que, mais em acto de ingenuidade desesperada do que de agressiva atitude política, um grupo de jovens timorenses proclamava a independência da República Democrática de Timor Leste.
RUY CINATTI

PROPÓSITO INADIÁVEL


O que magoa é ver o pobre
timorense esquálido beber
água do pântano,
onde se escoam lixos,
comer poeira
e saudar-me, quando
rodo na estrada,
deus ocioso.

Tantos e tantos outros,
timorenses esquálidos,
olham-me como se dever fosse
abrir covas,
plantar repasto
de milho, arroz e carne,
encher copos vazios,
de bebedeira e sonho,
que não magoe,
mortifique o ócio,
reanime o tempo.

Fugir é melhor que prometer
esperança em melhores dias.

Fugir é atrasar
o discurso limite
travado pelas rodas
da dúvida maníaca.

Eu não prometo nada.
Invoco os montes
feridos pela luz,
o mar que me circunda
em Díli terra-tédio e de má gente.

Afino-me pelo timbre
limpo das almas
dos timorenses esquálidos
que me soletram vivo.

E sigo,
limpo na alma e no rosto,
sujeito à condição que me redime.
Os timorenses só terão razão
quando me matarem.

(de Uma Sequência Timorense, 1970)


REALISMO POLÍTICO

Se os Timorenses quiserem ser Indonésios,
passem para o outro lado.

Se os Timorenses quiserem ser Portugueses,
têm-me a seu lado.

Se os Timorenses quiserem ser independentes,
construam-se.

30/6/74

(de Timor-Amor, 1974 - na versão original a última palavra deste poema era "sumam-se". Porém, esta é a versão definitiva, incluída na antologia editada pouco depois da morte de Cinatti pela Presença e organizada por Joaquim Manuel Magalhães, que dele recebeu o encargo da substituição)
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

O meu primeiro e inesquecível encontro com Timor foi aquela madrugada em que, ao chegarmos a casa, depois de não sei que festa, mal abrimos a porta da rua fomos surpreendidos por um barulho de vozes e risos. E quando abrimos a porta da sala vimos os nossos filhos - ainda pequenos - e a queridíssima criada Luísa sentados no chão em roda de Ruy Cinatti que tinha ao seu lado uma mala de onde iam saindo tecidos, objectos de madeira, caixas, pequenas estatuetas, punhais - e naquela noite de Lisboa cheirava de repente a sândalo.
Mal nos vimos abraçaram-nos com alvoroçada alegria. Depois também nós nos sentámos no chão. O Ruy contou que o avião dele tinha chegado já de noite e ele não tinha tido coragem para ir àquela hora em busca de hotel. Por isso tinha mandado o táxi seguir para a Travessa das Mónicas e disse que ia dormir ali mesmo no chão porque gostava muito do nosso chão. Mas logo a Luísa partiu a fazer-lhe uma cama e eu fui deitar as crianças tontas de sono e de excitação. E de novo me sentei no chão a ouvir as histórias de Timor, das árvores, das flores, dos búfalos , das fontes, das danças e dos ritos. E enquanto falava o Ruy ia mostrando as suas fotografias da maravilhosa mulher de longos gestos e dos homens vestidos com os belíssimos trajes tradicionais - às vezes levantava-se e fazia alguns passos de danças timorenses.
E assim ficámos até dez horas.
Ao longo dos dias, ao longo dos anos muitas vezes falei de Timor com o Ruy. Contou-me como celebrara o pacto de sangue com o chefe de uma família timorense e como por isso, segundo a lei ancestral de Timor, se tornara ele próprio um timorense. De facto para ele Timor era uma verdadeira pátria. Para mim era uma ilha encantada no extremo do Extremo Oriente, mas para ele uma pátria - o lugar onde encontrara o seu destino.
E um dia trouxe-me um poema que ele traduzira da língua tétum - Chamava-se Consagração de uma casa timorense.
Era um poema sobre a construção de uma casa - uma construção simultaneamente prática e sagrada pois é a casa onde moram os deuses e os homens, a alma dos antepassados mortos e os seus descendentes vivos. O lugar onde convivem o presente e o passado e o eterno.
Uma construção que é, nos materiais e formas usadas, uma técnica meticulosa e rigorosa e, simultaneamente, é, gesto por gesto, uma poética. E onde o espírito religioso estabelece o carácter sacral do quotidiano.
Uma construção que é simultaneamente trabalho, canto, dança, grito, consagração e festa. Uma ordenação que é poema vivido rente ao quotidiano.
Não posso deixar de citar uma passagem do texto que diz:

«Estão atando, amarrando andam,
atar pontas só, amarrar as bases só,
atando bem, peso igual.
Já andam levando, já sustentando aos ombros,
Levantando aos gritos, levando em algazarra,
Dançando o Hou-ló, dançando o Herlele,
Entoando o Sala-makat e o Da’a-doun.
Cão estrangeiro, galo estrangeiro.
Cantar o Kolo-kolo e o Bui-muk.
Levar até vir, trazer até vir,
Terra plana, terra nivelada,
Em terra umbigo, em terra centro.
Em terra meio, em terra eixo,
Junto pedra angular, em pátio sagrado
Colocar plano, pôr ordenadamente,
O cimeiro seguir um ao outro, o pé um ao outro.»


(excerto do prefácio a À Janela de Timor de João Aparício)
JOÃO APARÍCIO
Nasceu em Díli, Timor Leste, em 1968.

PÁTRIA

Díli, 23-3-1987

A pura beleza
Minha úma lúlik
Infinda música
Ternura e fogo de um amor invencível
Flor universal de pétalas morenas.

[nota: úma lulik significa, literalmente, casa sagrada]


TIMOR FORTE

Díli, 10 de Junho de 1985

Quando fores perpetuamente livre,
Voa, Timor, voa! E mantém-te
Lá no firmamento, altura dos planetas.

Ergue fortaleza dos teus filhos,
Tece para as suas gerações uma ilha poderosa,
Para que nem por um só instante
Elas te digam, um dia:
Só nos legou uma casa,
Sem paredes, nem tecto,
Ó casa vazia!...

(de À Janela de Timor, editorial Caminho, 1999)

27.11.03



[sonhei que a primeira imagem deste blog seria do Pamplinas com sua locomotiva]
Ouvido de passagem:

- Parece que vai chover. Queres o meu guarda-chuva?
- Não é preciso, eu vou bem a pé.


___________________________________________________

- Ó mãe, quando é que acabam as aulas?
- Dia 18 de Dezembro.
- Para sempre?!?
[uma espécie de mistura temática de dois blogs que muito admiro, num poema do autor de outro blog, que igualmente admiro]

RUI MANUEL AMARAL

QUE DIRÁS ESTA NOITE


Desta vez eu tenho um plano.
Vou crescer para ti como um gato,
aninhar-me como um gato no teu colo,
vou sussurrar coisas secretas ao teu ouvido,
prender o teu coração como uma sombra
ou um deus silencioso.
Esta noite, um saco de flores
para o meu único amor.
Um cigarro eternamente azul
para mim.

(de Quartzo, Feldspato e Mica, incluído em Com faca e garfo, colectânea de textos Jovens Criadores 2001, co-edição da Íman edições e do Clube Português de Artes e Ideias, 2002)

26.11.03

G. K. CHESTERTON

[determinado político] era uma pessoa popular, como são geralmente os homens públicos, que no entanto parecem tornar-se cada vez mais nebulosos à medida que sobem mais alto. São os jovens e são os desconhecidos que possuem doutrinas decisivas e intenções expressas com nitidez. Uma vez exprimi o facto dizendo, penso que com alguma verdade, que os político não têm política.

(da Autobiografia, trad. e notas de Luís de Sousa Costa, Livraria Morais editora, 1960 - Círculo do Humanismo Cristão)
ESCRITOS DE QUMRAN

DA REGRA DA COMUNIDADE


O som da minha harpa por sua ordem santa
o sopro dos meus lábios à sua justa medida.
O dia e a noite começam, entro no pátio de Deus
a tarde e a manhã terminam, recito os seus preceitos.
Enquanto durarem eu hei-de estar
como fronteira, sem retorno.

(trad. José Tolentino Mendonça, in Rosa do Mundo - 2001 poemas para o futuro, Assírio & Alvim, 2001)
MANUEL MARIA BARREIROS

Viagem de Inverno


Sobre o horizonte Elêusis
presa de opaco silêncio

a boca escurecida
os olhos ainda quentes
pequeno esquife de areia
plácido calor do rádio

a velocidade da luz é 300 000 km por segundo

fala-se tanto nos aeroportos
um anjo negro
colou-se ao coração
como húmida película
____________

com pequena homenagem a
antónio franco alexandre
e morrissey


(in aqueles que têm os ossos frágeis nº 2 - primavera/verão 1999)

23.11.03

LORCA E A SUA POÉTICA
(De Viva Voz a G. D.)


«Mas que vou eu dizer da Poesia? Que te hei-de dizer de essas nuvens e de esse céu? Olhar, olhar, olhá-las, olhá-lo e nada mais. Compreenderás que um poeta não pode dizer nada acerca da Poesia. Isso é para os críticos e professores. Mas nem tu nem eu, nem nenhum poeta, sabe o que é a Poesia.
Aqui tens: repara. Eu tenho o fogo nas minhas mãos. Entendo-o e trabalho com ele perfeitamente, mas não posso falar dele sem literatura. Compreendo todas as poéticas; poderia falar delas se não mudasse de opinião de cinco em cinco minutos. Não sei. Pode ser que algum dia goste muitíssimo da má poesia, como gosto (como gostamos) hoje com loucura da má música. Incendiarei à noite o Partenon para começar a ergue-lo, de novo, pela manhã, sem nunca o terminar.
Tenho falado nas minhas conferências acerca da Poesia, mas do que não posso falar é da minha poesia. E não é porque seja um inconsciente daquilo que faço. Pelo contrário, se é verdade que sou poeta pela graça de Deus - ou do demónio -, também é verdade que o sou pela graça da técnica e do esforço, e por saber perfeitamente o que é um poema.»

F. G. L.

A presente nota sobre a Poética de Lorca foi ditada pelo próprio a Gerardo Diego e publicada por este na sua Poesia Española - Antologia 1915-1931, Editorial Signo, Madrid, 1932

(in Confronto - antologia de escritores modernos, volume 2º, 1946 - reproduzem-se texto e esclarecimento conforme a ortografia original. Não tem referência do tradutor.)

22.11.03

[outros melros XII]

FRANCISCO JOSÉ VIEGAS

As perguntas

Não tem rosto, o Deus dos perplexos. Nem voz.
Nem arrependimento. Nem a alegria dos alegres
ou o medo da escuridão. Não posso dizer-vos como
se encontram os seus caminhos, se o melro poisa

nas hortas junto do rio, ao adivinhar a tempestade.
Deus predador, o nosso, prudente, interdito,
que desagrada ao canto mais simples. As nossas
pegadas ficam no deserto, aguardam a passagem

como um fantasma que se desprende da chuva.
Esta luz é incerta, balança sobre as varandas, ameaça
os dias, converte ou desarma todas as palavras certas,

todos os olhos abertos. Não tem rosto, o Deus dos
perplexos, não caminha nos precipícios, não arde
como a urze fitando o céu, não o comove a morte.



(de O Puro e o Impuro, Quasi edições, 2003)

21.11.03

EMMA SANTOS

Preferi fugir. Fugir do exterior. Fugir do interior, abandonar os locais. Refugiar-me na irrealidade. Não sabia bem o que queria: estar no hospital ou voltar a encontrar-me com o mundo. Pensava numa única coisa: não aturar os outros, nem os de fora nem os de dentro.

Decidi. A loucura escolhida escrita nas folhas, esta loucura feita com as minhas palavras e os meus desejos. Lancei-me no delírio como uma imensa extensão de água à minha frente, impelida e atraída pelo meu duplo. Os outros na margem, tentavam recuperar-me, interromper-me. Proibiam-me que ultrapassasse as fronteiras da decência. Investiam, seduziam-me com drogas, ameaçavam-me. Eu fugia para mais longe.

Caminho fora. Inspiro o desdém. Ninguém me vê. Acotovelam-me, tropeçam em mim. Peço desculpa, digo obrigado em voz baixa. Discreta, tímida ao sabor do burburinho. Anulo-me, escura, neutra, invisível, apago-me branca, suja, parda, preta. Tento coser-me com os muros. Os meus olhos cospem vapores sobre o mundo, uma boca de encontro ao vidro. É o meu sangue que se esvai em fumo. O meu sangue aquece e evapora-se. Os meus olhos com laivos de vermelho. Envergonhada, entro num corredor. As vassouras e os gritos das porteiras lançam-me fora. As escadas enceradas, as passadeiras às flores, as entranhas dos prédios são-me vedadas. Não subirei até ao cimo. Uma casa pequena embora, um sítio para repousar, um canto para descansar, uma cama para me deixar ficar, um buraco... Caminho. As pessoas fazem sinais, pensam que não sou bem como elas. Há qualquer coisa, não sabem exactamente o quê. Uma suspeita, uma impressão, é isso. Ou então, nem pensam nada.

(excerto de O Teatro, Assírio & Alvim, 1981 - colecção Gato Maltês - trad. de Manuel João Gomes)