31.12.05

Deixo aqui a minha escolha dos melhores livros de poesia que li durante 2005 e que enviei para a lista do Livro Aberto, de Francisco José Viegas:

Ana Luísa Amaral, Poesia Reunida: 1990-2005 (Quási)
Armando Silva Carvalho, Sol a Sol (Assírio & Alvim)
Isabel de Sá, Repetir o Poema (Quási)
João Almeida, A Formiga Argentina (Averno)
José Tolentino Mendonça, Estrada Branca (Assírio & Alvim)
Manuel de Freitas, A Flor dos Terramotos (Averno)
Paulo Teixeira
, Orbe (Caminho)
Pedro Sena-Lino, deste lado da morte ninguém responde (Quási)
Rui Coias, A Ordem do Mundo (Quási)
Rui Pires Cabral, Longe da Aldeia (Averno)

[sem ainda conhecer o conteúdo, apostaria nos dois de José Emílio-Nelson que ainda não apareceram nas livrarias: A Festa do Asno e Gag Dag (Canto Escuro)]

Ezra Pound, Os Cantos (Assírio & Alvim)
Konstandinos Kavafis, Os Poemas (Relógio d'Água)
T. S. Eliot, Prufrock e Outras Observações (Assírio & Alvim)
William Blake, Sete Livros Iluminados (Antígona)

[entre os meus livros de poesia de 2005 está também um ainda inédito, que o Autor, Ruy Ventura, teve a amabilidade de me enviar e do qual postei aqui um poema: Habitação do Tempo]

26.12.05

DYLAN THOMAS

The Hand that Signed the Paper


The hand that signed the paper felled a city;
Five sovereign fingers taxed the breath,
Doubled the globe of dead and halved a country;
These five kings did a king to death.

The mighty hand leads to a sloping shoulder,
The finger joints are cramped with chalk;
A goose's quill has put an end to murder
That put an end to talk.

The hand that signed the treaty bred a fever,
And famine grew, and locusts came;
Great is the hand the holds dominion over
Man by a scribbled name.

The five kings count the dead but do not soften
The crusted wound nor pat the brow;
A hand rules pity as a hand rules heaven;
Hands have no tears to flow.

(publicado pela primeira vez em 25 Poems, 1936)


A MÃO ASSINOU O PAPEL

A mão assinou o papel e abateu uma cidade;
Cinco dedos soberanos colectaram a respiração,
Dobraram o globo de mortos e desertaram meio país;
Estes cinco reis fizeram morrer um rei.

A mão poderosa leva a um ombro curvado,
Os nós dos dedos crispam-se com cal;
Uma pena de ganso pôs fim ao assassínio
Que pôs fim às falas.

A mão assinou o tratado e gerou uma febre,
E cresceu a fome e vieram os gafanhotos;
Grande é a mão que tem domínio sobre
Os homens por um nome garatujado.

Os cinco reis contam os mortos sem suavizar
A crosta da ferida, sem acariciar o rosto;
Mão que governa a mágoa qual a mão que governa o céu;
As mãos não têm lágrimas para chorar.

(tradução de Joaquim Manuel Magalhães, in Dylan Thomas - consequência da literatura e do real na sua poesia, Assírio & Alvim, 1981 - Cadernos Peninsulares / ensaio)


A MÃO AO ASSINAR ESTE PAPEL

A mão ao assinar este papel arrasou uma cidade;
cinco dedos soberanos lançaram a sua taxa sobre a respiração;
duplicaram o globo dos mortos e reduziram a metade um país;
estes cinco reis levaram a morte a um rei.

A mão soberana chega até um ombro descaído
e as articulações dos dedos ficaram imobilizadas pelo gesso;
uma pena de ganso serviu para pôr fim à morte
que pôs fim às palavras.

A mão ao assinar o tratado fez nascer a febre,
e cresceu a fome, e todas as pragas vieram;
maior se torna a mão que estende o seu domínio
sobre o homem por ter escrito um nome.

Os cinco reis contam os mortos mas não acalmam
a ferida que está cicatrizada, nem acariciam a fronte;
há mãos que governam a piedade como outras o céu;
mas nenhuma delas tem lágrimas para derramar.

(tradução de Fernando Guimarães, in A mão ao assinar este papel, Assírio & Alvim, 1990 - Gato Maltês)


A MÃO QUE ASSINOU O PAPEL...

A mão que assinou o papel destruiu uma cidade;
cinco soberanos dedos tributaram a respiração,
de mortos duplicaram o mundo, a meio cortaram um país:
estes cinco reis provocaram a morte de um rei.

A poderosa mão conduz a um ombro descaído;
sofrem de cãibras as junturas dos dedos engessados.
Uma pena de pato pôs fim ao morticínio
que tinha posto fim às negociações.

A mão que assinou o tratado engendrou febre,
e aumentou a fome, e vieram gafanhotos:
grande é a mão que sobre todos impera
com o gatafunho de um nome.

Os cinco reis contam os mortos, mas não acalmam
a crosta das f'ridas nem a fronte afagam.
Há mãos que regem a piedade, outras o céu:
só não as há que vertam lágrimas.

(tradução de David Mourão-Ferreira, in Vozes da Poesia Europeia - III / Colóquio Letras número 165 - Setembro-Dezembro 2003)

24.12.05

ADÉLIA PRADO

Noite feliz


Dói tanto que se pudesse diria:
me fere de lepra.
Mas que importa a Deus o monte de carne podre?
Tem piedade de mim, Vós, cujo filho duas vezes gritou,
apesar de ser Deus. Me dá um sonho.
É como se meu pai não me amasse
e não tivesse dado a vida por mim.
Só belos versos, não.
Uma linha depois da outra,
tão finamente escritas,
com tão primoroso fecho
- e o que sinto é cansaço.
Basta a beleza própria
da estocada das coisas no meu peito.
Comer, sonhar, talvez morrer, quem sabe?
A morte existe, ô pai?
Sei que na Polônia católica
ninguém escreveu com estas mesmas palavras
na carrocinha de doces:
'Para todos e sua família desejo um feliz natal.'
No Brasil sim, na minha rua,
usando uma língua pobre e uma caneta de cor,
alguém sentiu o inefável.
Não se perderá o fermento, ó comadre.
Bebem? Não pagam as contas?
- Vamos fazer um teatro.
Tem a máscara do boi, do burro,
as vestes de José e Maria,
tem a roupa do homem que negou hospedagem
mas que veio depois, depois da estrela,
dos anjos, depois dos pobres pastores, e que mais recebeu.
Porque não merecia.
Sou miserável.
Um monte de palha seca
é obra de minhas mãos.
Tem piedade de mim,
desce, orvalho do céu,
desce sobre nós,
restabelece o fio das conversas saudáveis.
Traze a fresca manhã.

(de Terra de Santa Cruz, 1981)
FERNANDO SYLVAN

MENINO JESUS DA MINHA COR


Meu Natal Timor,
Meu primeiro Natal.

Quantos anos tinha?!
Nunca o soube ao certo.

Minha Mãe-Menina
Fez-me o seu presépio:
Uma encosta arrancada ao Ramelau
Com uma gruta ausente
Cheia de Maromak
E perfume de coco,
Um búfalo e um kuda
E o bafo quente dos seus pulmões.

E um menino sobre a palha de arroz
E folhas de cafeeiro.

Um menino branco
Igual aos que chegavam de longe.
- Ínan, quem é?
- É o Maromak-Filho e teu Irmão!

E eu recuei, porque via no berço
Um menino rosado,
Um menino branco
Igual aos que chegavam de longe.

- Ele é, mais do que todos, teu Irmão...
- Mas como pode ser um meu irmão?
- É teu Irmão: Firma-lhe bem teus olhos, meu Amor!

E eu, obedecendo,
Firmei-me todo nEle.
E vejo-O desde então
Também da minha cor!

(de 7 poemas de Timor, 1965)


Ínan = mãe
Kuda = Pequeno cavalo
Maromak = Deus
JOÃO PEDRO GRABATO DIAS

Natal a 40 graus de beatitude leste


Ninguém é mais Rei do que eu.
Nem os 3 de Belém.
Eles iam ver o Seu
Rei meu só ou ninguém!

Falando de Realezas:
- O Rei vai nu!
- O menino não diga subtilezas
Cale a boca qu'inda é pequeniiinooooo...!

(de uma meditação 21 LAURENTINAS e dois fabulírios falhados, edição do Autor, 1971)

23.12.05

A propósito disto:


Isto:

Camauro: Cobertura para a cabeça, exclusiva do Papa, maior que o solidéu, de forma a cobrir as orelhas. É de veludo vermelho, guarnecido a cetim da mesma cor, debruado com plumas de cisne e forrado a arminho; durante a semana "in albis", o camauro é branco.

(in Thesaurus - vocabulário de objectos do culto católico, coordenação de Natália Correia Guedes, Fundação Casa de Bragança, 2004)

21.12.05

[já é Inverno na Terra]

NUNO HIGINO


As minhas mãos sabem a terra
das minhas mãos nascem gardénias
e neva nas minhas mãos
quando é inverno

(de Onde correm as águas, Campo das Letras, 2003)

20.12.05

RUI KNOPFLI

O POETA É UM FINGIDOR


Entreteço palavras
na malha áspera destes versos
e a tessitura triste que faço
mais esmorece no azul baço
do papel. Entristeço então
a alma numa renda miúda
e apertada de ponto incerto
e complicado. Estabeleço assim
dois mundos convergentes:
A textura entristecida dos versos
e a tristeza entretecida da alma.
E logo esqueço onde tudo isto
teve começo:
Se de entristecer palavras,
se de entretecer sentimentos,
se de constrangera alma,
se de contristar palavras:
se me contristei constrangendo,
se me constrangi contristando.

Sei que me contristo entretecendo
e me entreteço de tristeza.

(de Mangas Verde com Sal, 1969)

19.12.05

Dá gosto uma Terra assim, como a de hoje, da Alegria.
Um texto com ilustrações, de um ilustre/ilustrado Autor.
JOSÉ AFONSO

De não saber o que me espera


De não saber o que me espera
Tirei a sorte à minha guerra
Recolhi sombras onde vira
Luzes de orvalho ao meio-dia

Vítima de só haver vaga
Entre uma mó e uma espada
Mas que maneira bicuda
De ir à guerra sem ajuda

Viemos pelo sol nascente
Vingámos a madrugada
Mas não encontramos nada
Sol e água

De linhas tortas havia
Um pouco de maresia
Mas quem vencer esta meta
Que diga se a linha é recta

(do álbum Fura Fura, 1979)

18.12.05

NUNO JÚDICE

ARTE DO POEMA


Eu pensava que escrever era uma escolha rigorosa de temas determinados,
e mais - que a progressão no poema, sem confundir um tema e outro,
pelo contrário iria estabelecer uma rigorosa separação. Entre,
por um lado, o interior dos sons, e por outro o rebordo exterior
do sentido, evoluindo este último segundo os efeitos próprios dos sons
em cada diversa sensibilidade.
Assim, estabelecidas as múltiplas zonas «poéticas», eu poderia designar
o que está escrito,
e assim mesmo irá ficar,
como um estudo de poética - ou «arte do poema».

(de O Pavão Sonoro, 1972)

14.12.05

[da Alegria]

JOÃO LUÍS BARRETO GUIMARÃES

estamos dentro dos dias eu: na cidade do mar hoje é Dezembro
quase Natal quase partilha conheço alguns que têm contribuído
para a construção da terra (oh peço perdão desculpe mas:)

nunca trago trocado comigo. edificamos barreiras nos dias
(a nossa pequena história) reconhecemos nossos passos
desejamos o corpo dos amigos por entre mesas de taberna

entre a sangria e o mimo. na hora de todas as coisas: para
onde vamos? alguém nos irá julgar? talvez não seja esse o
momento final (as partidas foram feitas para se poder
regressar). vivemos para o efémero tentando convencer um

deus mas deuses assim têm um tempo de humanos. passamos
ao lado dos barcos (o tempo avança por sílabas) pode parecer
estranho escrever assim mas é quase manhã e ninguém
confessou ainda quem foi que deu o desfalque no meu coração

(encontrado na antologia Natal... Natais, de Vasco Graça Moura, Público, 2005)

8.12.05

VÍTOR NOGUEIRA

LET THERE BE LIGHT


Não há ruas perdidas numa cidade de luzes.
(Verdade ireefutável - essa de as pessoas
quererem por força colorir as suas vidas.)
Estendo os olhos na primeira direcção: um presépio
numa montra a jurar que o Natal chega em Novembro,
com o décimo terceiro mês da função pública.

De que nos serve esta luz sobre Lisboa?

(de Cinco Visitas ao Pássaro-da-Morte, in Telhados de Vidro nº 3 - Novembro 2004)

7.12.05

Almocei hoje com o pastorinho a quem apareceu a Maria há uns meses.
[Porque a Terra]

SILVINA RODRIGUES LOPES

  • O princípio e o fim confundiam-se. Nem o canto das cigarras deixava que o dia fosse. só dia, nem a claridade da noite impedia o grito.
    Era o vento nos ramos da figueira. Chuva, fogo, zangas de Deus e a alegria como relâmpagos. Concreto era tudo, porque ardia nos olhos, nas feridas de tantas quedas.


(de Sobretudo as vozes, edições Vendaval, 2004)

5.12.05

O quase oculto 75º aniversário da morte de Raul Brandão apanha-me ocupado e entusiasmado com a sua Obra, mais concretamente com a novela "A Farsa", mas com perspectivas de passar a outras obras (pretendo acabá-la e passar para "A morte do Palhaço" para depois entrar no "Húmus" e em "Os Pescador", mas acho que não deve fazer grande sentido falar de obras menores vs. obras maiores).
Só me pergunto: como é que não comecei a ler este tipo antes?

2.12.05

[Fernando Pessoa visto do exterior - II]

JOHN WAIN

Ele, o Sr. Pessoa, acolhia bem a vida. Vamos escrever com letra grande:
amava e era sensível à Vida, e se ela assumia um semblante
ele ficava contente por saudá-la e tinha o quarto limpo expressamente
para acolher a deusa - mas não tentava prendê-la ou demorá-la.
Há homens que se portam como se a vida fosse uma jovem apetecida:
armam ciladas, fazem negaças, exibem-se se sabem que ela os vê.
O Sr. Pessoa por seu lado lidava com a vida mais como vizinho:
ela nunca andava longe e ele tinha a certeza de a encontrar às vezes.
Costumavam falar na rua, cavaqueio sem outras intenções,
às vezes ela passava lá por casa e então durava mais o convívio,
ela era visita, ele anfitrião, e o diálogo parecia mais estruturado
depois, já de saída, mais um sorriso, cinco minutos de conversa à espera do carro.
O grande desejo do Sr. Pessoa era só que a Vida o aceitasse
como presença sem pretensões, amante que não ousava possuí-la:
ficar ali, quieto, confiante, até ao dia de irem buscar o seu caixão.

(de Reflexões sobre o Sr. Pessoa / Thinking about Mr Person, tradução de João Almeida Flor, edições Cotovia, 1993 - 1ª edição: Fenda edições, 1981)

1.12.05

[Fernando Pessoa visto do exterior - I]

IVAN STRKPA

LISBOA, POSTA RESTANTE


Nada se passa connosco: somos nós
que se passa. Mas quem é de facto
este intervalo entre mim e eu?
Entre Eu e outro Eu que poderá
haver também de irrealmente irreal?

Não há gente. Não há notícias. A cintilante
corneta dos CORREIOS baloiça em vão
em cada canto da cidade,
com o cavaleiro ondulando ao vento
em todas as bandeirolas vermelhas da PORTUGAL TELECOM.
Em Paris calou-se
Sá-Carneiro. Chevalier de Pas, Alberto Caeiro, Ricardo
Reis, o engenheiro naval Álvaro de Campos e também ORPHEU
há muito que morreram. Febrilmente jovem
Alexander Search sorveu como um relâmpago os seus malditos
flashes of madness e terminou isto
at twenty odd. A. A. Crosse desapareceu
sem ver a cor de nenhum prémio
nas grandes corridas de charadistas do Times.
Bebé, Bebezinho, a Ophelinha pequena evaporou-se
(há muito e depois mais uma vez. A última)
como uma velhinha decrépita e senil. Bernardo
Soares, o funcionário silencioso na rua dos Douradores.
emudeceu sem deixar rasto. Ninguém
escreve. A Tabacaria Costa e também a famosa tasca do Abel
já fecharam há muito. A Brasileira
está dia e noite cheia de turistas que tacteiam
nas canecas de cerveja as Tuas impressões digitais
e a Tua visão etérea.

A ausência de notícias gera em nós
velhas imagens: numa de entre mil fotografias
desbotadas (juntas com a Tua bem oculta
aura e com a arca de manuscritos que Te
sobreviveu) estrangeiro aqui como em toda a parte
vais caminhando, completamente só
- com nobreza, com óculos, inútil e vão,
Hermes multiplicado na Baixa e no Chiado,
na brisa leve do Tejo - pelo
Terreiro do paço, andas por aqui,
até ao Teu preferido, anónimo
e mais hermético lugar de comunicação
improvável. E a meus olhos,

nos vidros da porta giratória dos Correios,
através dos instáveis brilhos mercuriais,
espectral e impessoalmente vibra a Tua estátua
criadora de Mestre Nada, multiplicando
os seus enganadores e mentirosamente fiéis reflexos,
que nunca se encontram num Todo,
nem quando descrevem o seu círculo de novo aberto.
Nem quando abrem o seu círculo descrito na porta.
Nunca entram

(como um
homem, o rosto pamplinesco de pedra
e o chaplinesco sorriso invisível debaixo
do elegante chapéu defita larga
no fim dos anos vinte deste século),
mantendo como só ele mantinha
esse vibrante e oculto intervalo, reverberando
através da misteriosa e sobre-humana extensão
do silêncio atlântico.

Fernando, aqui
na Rua do Arsenal,
nas entranhas da Posta Restante da cidade de Lisboa,
a Tua única morada sempre válida,
o transparente e vazio apartado 147,
hermeticamente fechado, só eu,
quase totalmente à beira da sede imaginária,
no alegre cansaço de Ninguém e da visão astral,
seguindo as suas pegadas em todos os lugares
onde repousas, durante todo este
Abril de 95 etereamente irradiante,
espero para breve a tua resposta.

(de Planície, Sudoeste e outros poemas, tradução colectiva revista e apresentada por Luís Quintais, Quetzal editores, 1999)

30.11.05

DINIS MACHADO

(...)Sinto mas não penso. Fernando Pessoa andou, antes de mim, por estas frases, escreveu os versos onde todos nos relemos. Mas não viveu isto.
(...)

(in Reduto quase final, Bertrand editora, 1989)
FERNANDO PESSOA

- Comecemos por distinguir trez coisas que habitualmente se confundem quando se fazem referencias ao «Orpheu». Por «Orpheu» entende-se umas vezes a revistas com aquelle nome, de que sahiram só dois numeros, em Março e Junho de 1915; outras vezes os que estiveram ligados a ella, ainda que como simples espectadores proximos ou amigos, e sem que nella influissem ou collaborassem; outras vezes ainda, os que escreveram subsequentemente em estylo similhante ou approximado ao dos que de facto collaboraram no Orpheu.
- Ora eu parto do principio de que o que v. quere saber é como se organizou e lançou a revista «Orpheu», e de como foi recebida. É a isso, pois, que vou responder. Isto explicará desde logo, evitando confusões ou melindres que sem esta explicação se poderiam sentir justificados, porque motivo não cito varios poetas e escriptores que, pela mesma altura ou mais tarde, escreveram em estylo ou modo parecido com o nosso. Explicará tambem porque não vou buscar antecedentes, episodios anteriores à preparação do Orpheu, ou até as origens, reaes ou presumiveis, da corrente litteraria, pois foi uma corrente e não uma eschola, que semanifestou no Orpheu mas já antes começára.
- Vamos, pois, ao caso do apparecimento da revista. Em principios de 1915 (se não me engano) regressou do Brasil Luiz de Montalvor, e uma vez, em Fevereiro (creio), encontrando-se no Montanha commigo e com o Sá-Carneiro, lembrou a idéa de se fazer uma revista litteraria trimestral - idéa que tinha tido no Brasil, tanto assim que trazia para collaboração alguns poemas de poetas brasileiros jovens, e a idéa do proprio titulo da revista - «Orpheu». Acolhemos a idéa com enthusiasmo, e como o Sá-Carneiro tinha, além do enthusiasmo, a possibilidade material de realisar a revista, passou immediatamente a dar o caso por decidido, e desde logo se começou a pensar na collaboração. Contanto mais enthusiasmo acolhemos a idéa quanto é certo que ambos nós haviamos projectado varias revistas, mas sempre, por qualquer razão, os projectos haviam esquecido. O que esteve mais proximo de se realisar foi o de uma revista pequena, entitulada «Europa», que abriria por um manifesto, de que escrevi apenas uns quatro paragraphos, com collaboração occasional de Sá-Carneiro, e de que me lembro ser uma dasprincipaes affirmações a da nossa necessidade de «reagir em Leonino» contra o ambiente - phrase tendente, é claro, para a perfeita elucidação do publico.
- O certo, porém, é que se decidiu publicar o Orpheu. Sem perda de tempo se adoptaram o nome e a periodicidade, e se estabeleceu o numero de páginas - de 72 a 80 em cada numero. E ficou egualmente assente que figurariam como directores o Luiz de Montalvor e um dos poetas brasileiros seus amigos - Ronald de Cravalho. Digo «figurar como directores» sem intuito algum reservado. A direcção real da revista era, e foi sempre, conjuncta, por estudo e combinação entre nós trez e tambem o Alfredo Guisado e o Cortes Rodrigues, de quem fallarei a seguir. Ficou assente tambem, que o Luiz de Montalvor escrevesse o prefacio da revista, o que de facto fez, não collaborando porém no primeiro numero por não ter prompto ou não considerar prompto o poema com que de facto collaborou no segundo.
No mesmo dia ou no dia seguinte expuzemos, Sá-Carneiro e eu, a idéa da revista ao Alfredo Guisado e ao Cortes Rodrigues, e pode dizer-se que o numero ficou completo, sobretudo depois de termos obtido a collaboração do Almada Negreiros, que providencialmente tinha completado uma pequena série, interessantíssima, de trechos em prosa, a que pôs o título «Frisos» quando os inseriu na revista.
O Orpheu foi logo para a typographia, ficando eu apenas a completar o «Opiario» do meu personagem Alvaro de Campos, que embora hypotheticamente escripto antes da «Ode Triumphal» o foi realmente depois.
O numero foi de facto bem organizado. Começava, àparte o prefacio, com uns poemas do Sá-Carneiro e fechava com a «Ode Triumphal» do meu velho e inexistente amigo Alvaro de Campos. E, a proposito de Ode Triumphal. Para dar, mesmo para os proximos de nós, uma idéa de individualidade do Alvaro de Campos, lembrei ao Alfredo Guisado que fingisse ter recebido essa collaboração da Galliza; e assim se obteve papel em branco do Casino de Vigo, para onde passei a limpo as duas composições. Lembro-me ainda do Antonio Ferro e Augusto Cunha, então muito novos, e que frequentemente iam pelos IrmãosUnidos, lerem attentamente, sòsinhos numa mesa ao fundo, essas composições inesperadas; assim como me lembro do Almada Negreiros, depois de ler com enthusiasmo a Ode Trimphal, me saccudir fortemente pelo braço, visto a minha falta de enthusiasmo, e de me dizer, quasi indignado: «Isto não será como v. escreve, mas o que é é a vida». Senti que só a sua amisade me poupava à affirmação implicita de que Alvaro de Campos valia muito mais do que eu.
- Assim a blague começava em casa?
- A blague? De certo modo. Mas é bom entendermo-nos sobre isso de blague, pois fomos accusados de «fazer blague» em tudo quanto escreviamos e faziamos.
Quando vi que o Orpheu era dado como propriedade de «Orpheu Ltda.» observei ao Sá-Carneiro que era preferivel dizer «Empreza do Orpheu» ou coisa parecida, e não empregar uma designação de sociedade por quotas. «E se alguem se lembrar de pedir a certidão de registo no Tribunal do Commercio?» «Você crê?» disse o Sá-Carneiro. «Deixe ir assim. Gosto tanto, tanto da palavra limitada». «Está bem» respondi, «se o caso é esse, vá. Mas, olhe lá, que serviço é este de o Antonio Ferro figurar como editor. Elle não pode ser editor porque é menor». «Ah, não sabia, mas assim tem muito mais piada!» E o Sá-Carneiro ficou contentissimo com a nova illegalidade. «E o Ferro não se importa com isso?» perguntei. «O Ferro? Então v. julga que eu consultei o Ferro». Nessa altura desatei a rir. Mas de facto, informou-se o Ferro e elle não se importou com a sua editoria involuntaria nem com a illegalidade d'ella.
Por exemplo? Reviamos nós, Sá-Carneiro e eu, as provas da primeira folha, quando me surgiu, no prefacio de Luiz de Montalvor, a phrase «maneiras ou fórmas» transtornada em «maneiras de formas». Ia a emendar, quando o Sá-Carneiro me suspendeu. «Deixe ir assim, deixe ir assim: assim ainda se entende menos.»
Um sonetilho de Ronald de Carvalho vinha, por distracção ou outro qualquer motivo, mal pontuado. Tinha só um ponto no fim das quadras e outro no fim dos tercetos. Esta deficiencia lembrou-me a extravagancia de Mallarmé, alguns de cujos poemas não teem pontuação alguma, nem no fim um ponto final. E propuz ao Sá-Carneiro, com grande alegria d'elle, que fizessemos, por esquecimento voluntario, a mesma coisa ao soneto de Ronald de Carvalho. Assim sahiu. Quando mais tarde um critico apontou indignadamente que «a unica coisa original» nesse soneto era não ter pontuação, senti deveras um rebate longinquo num arremedo de consciencia. Depressa me tranquillisei a mim mesmo. A falta de fim justifica os meios.

(texto, originalmente dactilografado, publicado como inédito em Nova Renascença Número 2 - Inverno de 1981 - sem indicação do destinatário, nem da data - grafia como no original)
FAMOUS LAST WORDS

Fernando Pessoa, hoje há 70 anos: "Tragam-me os óculos"

22.11.05

LEOPOLDO DE LUIS

LA REALIDAD


No, no quiero los sueños. Es la vida,
la realidad la que nos llama. Escucha.
Son las cosas estrictas que tocamos
las que nos prestan su difícil música.

Difícil, sí, difícil es alzarse
desde el silencio de la pena abrupta
y tocar con los dedos aún heridos
estas candentes realidades duras.

Pero lo mismo que esos pobres árboles
frente a los brazos del otoño luchan,
hemos de defender hoja por hoja
la rama viva que nos da la fruta

de la esperanza, que hace cada día.
esa naranja un poco más madura.
Contra el inevitable helor del tiempo
que con tus amantes manos la recubran.

No. No es el sueño. Es esta vida diaria
la que hay que comenzar de nuevo. Busca
en mí el esfuerzo y la sonrisa. Míralos.
(Aunque los finja Por vencer tu duda.)

Porque era esto lo que contenía
aquella caja de sorpresas...
Nunca
podremos ya volver atrás. La tarde
sombra a nuestras espaldas acumula.

18.11.05

TAO YUANMING

BEBENDO VINHO
O Número Sete


Crisântemos no Outono, a mais bela cor.
Com orvalho ainda - os colho, e faço-os
Flutuar neste que afoga cuidados:
- Põe-me bem longe do mundo.
Encho, sozinho, um copo de vinho,
Se fica vazio, deita por ele o jarro.
Põe-se o sol, tudo o que é vivo sossega,
Aves de volta entram no bosque cantando.
Assobio na varanda do leste, alegremente:
Encontrei de novo o sentido à vida.

(tradução de Gil de Carvalho, in Uma Antologia da Poesia Chinesa, Assírio & Alvim, 1989)

17.11.05

[outros melros XXXI]

RUI COIAS

21.


Vejo com os olhos de deus.
Adormeço como ele sobre as paisagens.
Dispus cuidadosamente o sangue pelas areias,
ao dobrar o cabo dos anos, calei-me.
Ficarei de fora olhando avida em
horas mortas
como as crisálidas que abrem nos fios de água.
O tempo vai esmorecendo nas pobres vozes,
é uma terra parada a que nos deixa a descobrir.
E deus cala-se a meu lado, adormecido
como o melro docemente tranquilo.

(de A Função do Geógrafo, edições Quasi, 2000 - Biblioteca uma existência de papel)

16.11.05

Referência bibliográfica

O debate entre o Cardeal Martini e Umberto Eco a que o Tim se refere hoje, na Terra da Alegria, foi traduzido e publicado em português:
Em que crê quem não crê?: um diálogo sobre ética no final do milénio / Umberto Eco e Carlo Maria Martini, tradução de Valentim Marques e António Maia da Rocha - Coimbra: Gráfica de Coimbra, 2000
[da Alegria]

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO

MANHÃ ETERNA


Terra, mas terra extensa, de longes baços
terra de além
que se alonga e se despedaça em ondas
mas ondas de verdura
nos horizontes.
Terra sem fim, a desfazer-se em fumos.
Além que se desfaz em odores
e em névoas.
Terra, mas terra forte e luminosa
capaz de germinar no seio astros.
Planície que se evapora na altura
enxuta em sol.
Terra de corredores internos
subterrâneos cheios de luz.
Ouro potável, castanho e solar.
Searas extensas como céus.
Grãos luminosos e ardentes, sementes
que se espalham pela terra como cometas.
Terra celeste, flor astral
onde a noite acorda pelo Abril do dia.
Terra de luz, cheia de ouro
que estremece como uma estrela.

(de Estrela Subterrânea, Limiar, 1993 - colecção Os Olhos e a Memória)

15.11.05

GIL DE CARVALHO

E por Novembro
A galinhola toma-se da luz,
Já pouca, e levanta na bruma
De um pinhal
Coberto

Das montanhas ao mar.

(de De Fevereiro a Fevereiro, Centelha, 1987 - colecção Poesia Nosso Tempo)

14.11.05

Novos Livros II

Pela mão do Vitor Vicente, saem, por estes dias, dois novos livros de José Emílio-Nelson.
Transcrevo o que David Soares diz deste autor: "Costuma dizer-se que a poesia de José Emílio-Nelson é feita de escatologismos quando se tenta ofuscar uma fina sensibilidade que a atravessa: escatológica será, seguramente, mas, igualmente, inventiva e alerta na sua crítica social e acusação interior. O que me fica após a leitura é a certeza de que José Emílio-Nelson é um poeta do espaço: não só do espaço exterior, mas um autor que, como Bataille, conversa connosco, preferencialmente, das coordenadas do espaço intímo - e de forma arguta como um arquitecto que nos procura convencer das suas escolhas."
Novos Livros I

"Rui Coias é alguém que não tem pressa. Saber esperar revela sagesa. (...) Rui Coias é uma voz singular entre os melhores da sua geração." Isto lembra Eduardo Pitta, para informar do aparecimento do segundo livro (o primeiro foi "A Função do Geógrafo", de 2000) de um dos autores recentes que mais aprecio

13.11.05

MARCO AURÉLIO

De resto, tudo o que é belo de qualquer maneira é belo em si mesmo; é perfeito em si e não como parte integrante de si mesmo. O objecto que se louva não se torna por isso nem melhor nem pior. E o mesmo digo daqueles objectos que qualificamos comummente de belos, por exemplo, os objectos materiais e os produtos de indústria. O que é belo essencialmente de nada mais precisa; de nada mais que a lei, que a verdade, que a benevolência, que o pudor. Qual destas virtudes é bela pelo facto de a louvarem ou se avilta pelo facto de a criticarem? Acaso perde o preço a esmeralda se a não enaltece um louvor? E o oiro, o marfim, a púrpura, uma lira, uma espada, uma flor, uma árvore?

(parág.º 20 do Livro IV dos Pensamentos, tradução de João Maia, editorial Verbo, 1971)

11.11.05

ANTÓNIO TABUCCHI

«O senhor estudou aqui?», perguntei.
Parou a olhar para mim, e pareceu-me que nos seus olhos passava um relâmpago de nostalgia. «Estudei em Londres e depois especializei-me em Zurique». Tirou do bolso o seu estojo de palha e pegou num cigarro. «Uma especialidade absurda, para a Índia. Sou cardiologista, mas aqui ninguém é doente do coração, só vocês na Europa morrem de enfarte».
«De que se morre aqui?», perguntei eu.
«De tudo o que não tem a ver com o coração. Sífilis, tuberculose, lepra, tifo, septicemia, cólera, meningite, pelagra, difteria e outras coisas. Mas eu gostava de estudar o coração, gostava de perceber aquele músculo que comanda a nossa vida, assim». Fez um gesto com a mão abrindo e fechando o punho. «Talvez eu julgasse que descobriria qualquer coisa lá dentro».

(excerto de Nocturno Indiano, tradução de Maria Emília Marques Mano, Quetzal editores, 1ª ed. de 1984)

9.11.05

[hoje, na Terra, o Tim e o Fernando falam duma ciência ameaçada]

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

Furtivos lírios


Contemplava a própria vida
na sorte desses instantes
que tanto se assemelham a furtivos lírios
à chegada da noite
mas dizia: um coração é sempre um pássaro
evadido à censura da penumbra

nenhum sofrimento conseguia desfazer
as muitas exaltações que mantinha
e mesmo à beira do abismo
exibia uma facilidade talvez sem razão


quando a arte das chamas se tornou
nas cidades uma ciência ameaçada
percebemos que há muito nos falava
do interior das florestas


(de Baldios, 1999)

8.11.05

Uma autêntica declaração de amor pela Rádio!
(pelo, agora, director da Rádio Comercial, Pedro Ribeiro)
A propósito dos acontecimentos destes dias em Paris, merece destaque a declaração do presidente da Conferência Episcopal Francesa, reproduzida ontem na Terra da Alegria pelo Zé Filipe.
Coisas que já sabemos, mas que é importante serem repetidas e lembradas.


O híbrido do nome diz tudo, mas vale a pena a especificação: "Contra o cultivo da insensibilidade".

7.11.05

A propósito duma ideia de relaxamento intelectual cito, de memória, um desaforismo de Adília Lopes: "The APE in the SPA / O macaco no ginásio".
(A que se poderia acrescentar: "With a PEN / com uma caneta")

5.11.05

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

ESPRAIAR DO ATLÂNTICO


A mim amante da onda arqueada o-
pala desgostou-me o mediterrâneo
denso. Saudade das sinusóides
e curvas rítmicas. O paradigma
das comparações que envolvem o seman-
tema mover-se. O atlântico, o que
não é aprisionado pelas margens?
Estará aquele outro mar conti-
do na imobilidade terrena? Gra-
dação infinita. Único conteúdo
expansivo. Princípio e fim
do meio-círculo (como na cabeça
do Purbachius). Sustân-
cia mais heterogénea. Manchas que
um amante da cor ocre vê na areia.

1985

(in Água Clara - Poetas em Vila Viçosa, Património XXI, 1987)

2.11.05

HÖLDERLIN

TERRA NATAL


Alegre regressa o marujo ao rio tranquilo,
De longínquas ilhas, quando colheu seu lucro;
Também eu voltaria assim à terra natal, tivesse eu
Tantos bens colhido como dores colhi.

Ribeiras queridas, que outrora me criastes,
Acalmais vós as dores do amor? Prometeis-me vós,
Bosques da minha juventude, se eu
Voltar, mais uma vez repouso?

Junto ao regato fresco, onde vi brincar as ondas,
Junto ao rio, onde vi singrar os barcos,
Em breve eu estarei; a vós, montes amigos
Que outrora me abrigastes, da minha terra

Seguras fronteiras veneradas, à casa materna
E aos abraços dos irmãos amado,
A todos saúdo em breve, e vós me envolvereis,
Que, como em faixas, o coração me sare,

Ó meus fiéis! Mas eu sei, eu sei,
A dor do amor, essa não cura tão breve,
Essa não me afasta do peito
Nenhuma canção de embalo, que mortais cantem.

Porque aqueles que nos dão o fogo celeste,
Os deuses, também nos dão a dor sagrada.
Por isso esta fique. Filho da terra
Pareço eu: feito para amar, para sofrer.

(tradução de Paulo Quintela, in Obras Completas II, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997)

1.11.05

ALMEIDA FARIA

JÓ NO DIA DE TODOS-OS-SANTOS DE 1975


Hoje os noticiários anunciaram, enquanto Tiago ouvia rock na rádio, que uma viatura militar explodiu com um engenho de fraca potência no estádio da Luz. Já estamos habituados e não ligamos nada, mas mesmo assim a mãe receia sempre que a nossa casa um dia vá pelos ares. Como neste dia em 1755, quando Lisboa e parte do país foram arrasados pelo terramoto, muita gente espera ver vir uma calamidade ainda maior que todos os cataclismos que nos caíram em cima, e nem todos os santos juntos nos vão salvar. Pelo menos é o que disse o padre na missa, depois de ter lido o Apocalipse da epístola, anunciando castigos temíveis para os que cederem ao inimigo, cada vez há menos gente na igreja, quase só beatas e alguns lavradores expropriados sem terem que fazer e sem saberem ocupar o tempo. A mãe obriga-me a ir com ela porque precisa de companhia, quando não consegue levar o Tiago que anda na rua a brincar com outros gaiatos. Antes da revolução era obrigatório aos sábados de manhã ir às aulas de Moral, que eu passava de joelhos várias vezes, de castigo por ter sido apanhado a desenhar mulheres imorais enquanto o padre falava de gente espetada no ferro em brasa que entrava pela boca e saía pelo rabo ou ao contrário. Enquanto ficava ajoelhado ao lado da carteira, ou de pé ao canto da sala e de costas viradas para a turma, via-me escondido no castelo até me perder dos companheiros, chegava-me demais às muralhas ameadas, sentia a tontura de olhar para baixo, sofria a tortura das vertigens, perdia a segurança, o equilíbrio, começava a tombar, ia cair, a altura era tal que levaria alguns segundos antes de alcançar o solo sujo de lixo e erva crescida do fosso da barbacã e tentava remar com os braços no ar quando evitar a queda era impossível, a cabeça às cambalhotas e o corpo esbracejando sem esperança em direcção à morte que me esperava em baixo a rir às gargalhadas, caveira sobre um esqueleto vestido de manto cinzento, trambulhão sem rede que nunca mais acabava, nem tinha fim a caída nem conseguia sair duma falta de vontade, de genica para lutar, , indecisão de movimentos, transformado em morcego de asas de pano negro ou qualquer bicho repelente de olhos fechados, cegos à luz do dia, nas pálpebras um peso molengo, pedra-pomes porosa diante dos olhos condenados à clausura do escuro do túmulo onde Tiago estava encerrado em urna de chumbo sem sequer poder respirar porque o oxigénio faltava aos poucos, aos poucos, depressa demais, não havia fuga, os gases do escape do motor do carro em funcionamento dentro do espaço fechado iam-no matar.
Não era a nossa garagem, era numa cidade sem nome, as cozinhas tinham cheiros enjoativos a óleos mil vezes ardidos em diferentes fritos, embotando baços, minando intestinos de gente que só pensa em encher a pança apesar de cercada por inimigos menos presentes que pressentidos, eu mandei pôr meias solas nas minhas botas para saltar montes e vales em pulos de sete léguas, passar por cima das torres do castelo, chegar à Aldeia Aérea, encontrar os cavaleiros redondamente sentados em redor da sua mesa, pedir que salvem Tiago de morrer asfixiado. Mas não consegui subir, chovia, a várzea dos Cantares ficara inundada, seria preciso abrir a comporta para a cheia não ultrapassar os muros do açude destruindo tudo, campos, culturas, a horta onde o burro tirava água à nora embora isso fosse inútil sob a chuva, para o ir buscar eu tinha de atravessar um pau mal equilibrado sobre o cimento do vau da descarga das águas, tronco de madeira podre semelhante ao do quadro do anjo da guarda no nosso quarto onde acordo aliviado ao ritmo do rock ouvido por Tiago afinal salvo.

(capítulo 31 de Cavaleiro Andante, 1983 - quarta parte da "Tetralogia Lusitana")

29.10.05

A imagem real não tinha cor...
ELIAS CANETTI

O que é que vive numa linguagem? O que é que ela encobre? O que é que ela capta? Durante aquelas semanas passadas em Marrocos, nunca tentei aprender árabe nem tão pouco os dialectos berberes. Não queria perder nada da força contida nessas estranhas lamentações. Queria ser apanhado em cheio por esses sons e não abrandá-los através de vagos conhecimentos, tão insuficientes como artificiais.
Nada lera sobre essa terra. Os seus costumes eram-me tão desconhecidos como as suas gentes. O pouco que se possa ter aprendido durante toda uma vida acerca de qualquer país e acerca do seu povo, some-se, por inteiro, logo nas primeiras horas.
Por exemplo, a palavra «Allah», na qual nunca consegui penetrar, aproximar-me dela, sequer. E, no entanto, nessa palavra assentava boa parte da minha experiência, sendo como era a mais frequente, a mais eficaz, a mais aguda, a mais permanente das que os cegos iam pronunciando.
Para uma viagem levamos connosco quase tudo, mas a revolta, a indignação, essas foram deliberadamente esquecidas em casa. Vemos, ouvimos, maravilhamo-nos perante o medonho, só porque o medonho é algo de novo. O bom e perfeito viajante não tem coração!

(excerto do capítulo As lamentações dos Cegos, de As Vozes de Marraquexe, tradução de Isabel Ramalho, publicações Dom Quixote, 1991)

26.10.05

[da Terra]

DANIEL FARIA

JUNTO DOS RIOS DA BABILÓNIA [sl 136 (137)]


Nas margens dos rios imaginando pontes
Quando já só no nosso pensamento deslizavam
Debaixo da sombra das nossas liras
Ali nos pediam - em solo alheio -
Que cantássemos canções da nossa terra.
Como poderíamos cantar a nossa infância
Tão longe, num país estranho?

Os salgueiros têm folha persistente

Sob a sombra persistente a mudez
Junto dos rios da Babilónia
Foi a única das nossas alegrias

(de Homens que são como Lugares mal Situados, Fundação Manuel Leão, 1994)

25.10.05

[um poema que me fez lembrar um dos meus blogues preferidos]

JOÃO RUI DE SOUSA

A LEBRE DE CORES


Confluem as cores na já descida
lebre que foi ontem madrugada.
Lesta como lebre, a despedida
era lebre de cores transfigurada.

Lesta (ou lépida?) a voz havida
dessa lebre de cores disseminada,
distribuída em pranto e em dor erguida,
sofria o sofrimento disfarçada

para não ferir as cores que se adensavam
na sua pele sedosa e nas cavadas
reentrâncias do pus da sua lida.

Era um grito distenso (apenas lasso?)
de quem por muito arder no seu cansaço
já morto estava antes de ser vida.

(de Enquanto a Noite, a Folhagem, 1991)

24.10.05

[outros melros XXX]

ANTÓNIO LEITÃO

XIII


Canta um melro triste
pelo mato denso;
triste porque o penso,
canta, logo existe.
Quem dera soltar-se
da Filosofia,
melro sem Descartes,
pura melodia!

(de O Tempo e o Sonho, 1989)

22.10.05

[contributo de um ouvinte dos Clã para o entendimento desta eleição presidencial - a começar pelo nome do cd]

CARLOS TÊ (letra) / HÉLDER GONÇALVES (música)

NOVAS BABILÓNIAS


Neste tempo de sucessos
de quedas e ascensões
para o topo dos topos

para o gelo dos copos
para a vala das gerações
novos Bogarts em velhas gabardines
novas Madonnas em velhas Marilyns
crestam lendas nos magazines
ao ritmo das ilusões

novas Babilónias erguem-se do pó

e lê-se tudo em diagonal
e tudo chega a horas a Portugal
o comboio está agarrado
por fim o tempo está mesmo ao lado
já chegou o Desejado
e o sonho está normalizado
na suave proporção
de um para x elevado a um cifrão


novas Babilónias erguem-se do pó

tudo é novo e velho num vaivém de espuma
tudo se refunde no brilho da bruma
e vós combatentes de guerras idas
contentes lambendo as mãos do rei Midas
Joanas, Joões de arcas perdidas
saltadores de fogueiras já ardidas

cinzas de cinzas de cinzas
bem-vindos ao império das coisas parecidas

novas Babilónias erguem-se do pó

(do álbum lusoqualquercoisa, 1996)

20.10.05

INÊS LOURENÇO

O instante anterior


Uma ave estremece
no instante anterior
à rigidez das asas. Também ela
apesar do sentido inato
para sobrevoar abismos
transporta no corpo
a circulação pastosa do sangue
e a informe substância do
perseguido alimento.

(de A Enganosa Respiração da Manhã, Asa Editores, 2002)

19.10.05

[dia da Terra]

VASCO MIRANDA


DEMISSÃO


Se pudesse escrevia um poema sem palavras.
As palavras não existem. Já nada dizem
Do que antes era. Antes
Quando o medo era sombra inexistente
E era possível aos homens falar de amor.
Agora há só o espantalho do medo,
As bocas negras, a fome negra,
E o uivo dos cães mudos nas noites desertas e distantes.
Antes havia feras e cristão para as feras.
Agora, ou porque tudo são feras,
Ou porque já não há cristãos
(E há só o medo, o pavor, a fome,
As cumplicidades carnais ao topo dos ventos,
E o ridículo de se ter medo: o pasto das trevas)
A semente de Deus anda à deriva sem leira onde se acoite.

- Espuma, sonho, aurora, canto? - palavras ausentes.
No galeão da vida, haverá de novo bodas de sangue
Para que do Mar volte para a Terra
O viço e a alegria das novas sementes.

(de A Vida Suspensa, 1953)

17.10.05

VERGÍLIO ALBERTO VIEIRA

Arte Poética


1.

Chega a mão
a escrever
negro chega onde
escreve
chega onde chega
a escrever não

2.

Chega ou não
a escrever
não chega onde
chega
escreve onde a negro
escreve a mão

3.

Chega em vão
a escrever
negro escreve onde
chega
quando escreve
escreve não

4.

Chega então a
escrever
não chega negro
a escrever
mão escreve escreve
escreva ou não

(de O Voo da Serpente, Campo das Letras, 2001)

16.10.05

(Henri Matisse - Le Rideau Jaune, 1915)

C. LUÍS BESSA

20


a água corre para o rio

porque é preciso distinguir
distinguem-se pelos dedos
pelas unhas
a arte revela segredos e gritos
a arte revela sustos
le rideau jaune, rené magritte
e o açúcar vem sempre no fim.

(de Legenda, edições Atlas, 1995)

15.10.05

Santa TERESA DE ÁVILA

FORMOSURA QUE EXCEDEIS!


Formosura que excedeis
mesmo as grandes formosuras!
Sem ferir, sofrer fazeis,
e sem sofrer desfazeis
o amor das criaturas.
Oh, laço que assim juntais
duas coisas tão díspares!
Não sei porquê vos soltais,
pois atado força dais
para ter por bem os pesares.
Quem não tem ser vós juntais
com o Ser que não se acaba;
sem acabar acabais,
e sem ter que amar amais,
engrandeceis vosso nada.

(tradução de José Bento)
[nascido a 15 de Outubro de 70 a. C, faria hoje, portanto, 2075 anos, se fosse vivo]

PUBLIUS VERGILIUS MARO

BUCÓLICA SEXTA


Foi esta nossa Tália a que primeiro
verso siracusano vos compôs
e sem corar os bosques habitou.
Quando eu cantava os reis e seus combates
Cíntio me aconselhou pegando orelha:
«Títiro, o que convém a um pastor
é cuidar das ovelhas e ter verso
fácil e simples.» Vou então agora
ser poeta dos matos cuja frauta
modesta também seja. Que poetas,
Varo, sempre terás cuja ambição
seja a de irem cantando teus louvores
nessas funestas guerras. Se estes versos
tiverem um leitor que delas goste,
também a ti, ó Varo, hão-de cantar
tamargueiras e bosques, que obedeço
ao que me for mandado. Febo quer,
a tudo a preferindo, aquela página
que teu nome trouxer como motivo.
Piérides, em frente, que Mnasilo
e Crómis, os dois jovens, encontraram
a Sileno deitado numa gruta,
como sempre bem cheio todo o corpo
dos licores de Iaco. Da cabeça
as coroas lhe tinham descaído,
no chão a cantarinha ainda à mão.
Os moços, já que o velho muitas vezes
os trouxera ao engano na esperança
de lhe ouvirem o canto, o prendem firme
com as próprias grinaldas. Em socorro,
que tímidos estavam, Egle veio,
Egle, a mais formosa das Formosas
que são todas as Náiades, e pinta
ao Silvano que estava despertando
as têmporas e testa com amoras
que lhe deixaram tudo como em sangue.
Se riu ele da manha: «Por que atais
estes laços assim? Soltai-me, jovens,
já basta que se veja que tivestes
para tanto o poder. E vos direi
de versos meus o que saber quereis.
E para ela tenho eu outro favor.»
Logo começa e se podiam ver
Faunos e feras em cadência juntos
dançar como dançavam dos carvalhos
as balançadas copas. E jamais
gostou tanto o Parnaso de ouvir Febo
e tanto a seu Orfeu apreciaram
as montanhas do Ísmaro e Ródope.
Ela cantava como se um imenso
vazio houvesse e nele se juntassem
as sementes das terras, mares, ares
e do fluido fogo, os elementos
logo depois, também a pouco e pouco,
ganhando consistência o curvo céu,
em seguimento endurecendo o solo,
nos oceanos a ficar Nereida,
tomando sua forma tudo o que há.
A Terra com espanto viu brilhar
o sol-nascente, viu cair a chuva
das nuvens lá nos altos, começaram
os bosques a surgir e a vir andadndo
esparsos animais por virgens montes.
Cantou depois das pedras que atirou
Pirra e dos reinos que Saturno teve
e das aves do Cáucaso e do furto
que foi de Prometeu, da fonte de Hilas,
marinheiro a chamar e, pela costa,
por toda a costa, os ecos «Hilas! Hilas!»
A Pasífae cantou ele também,
a que feliz seria se jamais
existissem rebanhos, pudesse ela
com amor de novilho consolar-se.
As filhas de Proteu, com os mugidos,
os seus falsos mugidos, supuseram
ter os campos enchido, mas jamais
caíram na vergonha de se unir
a brutos animais, embora o medo
houvesse nelas de puxar arado
e por vezes passassem algum tempo
a procurar na fronte os rijos cornos.
Virgem sem sorte vaga nas montanhas
enquanto ele, deitado nos jacintos,
corpo de neve estende e sob azinho
rumina claras ervas ou persegue
uma qualquer novilha. E vós, ó Ninfas,
ó Ninfas de Dicte, fechai aos bosques
todo o passo que houver, para que a nós
se não revele, por qualquer vestígio,
esse errante bovino, que talvez
amor de verde pasto ou de rebanho
ou novilha lhe desse tentação
de penetrar estábulos gortínios.
Depois canta ele a moça que, atraída
pelo pomo de Hespéria, lá ficou;
em seguida, as irmãs de Faetonte
prendem amarga casca assim fazendo
que do chão brotem fortes amieiras.
Logo cantou de Galo o seu errar
nas margens do Permesso e de que modo
outra irmã o levou até Aónia,
de Febo ao coro e em honra do Herói
todos se levantaram; como Lino,
o pastor que como um deus cantava
e seu cabelo ornava de aipo amargo
com flores junto disse a ele um dia:
«A ti calamos dão Musas as que outrora
ao velho ascreu os deram, com os quais
costumava, cantando, os duros olmos
fazer descer do monte; dize tu
as origens do bosque de Guireu
para que nele tenha orgulho Apolo.»
Quem cantarei agora será Cila,
de Nilo filha, a que cingiu de monstros
suas alvas virilhas e tormenta
deu às naus de Dulíquio, os assustados
nautas dilacerando os cães marinhos?
Ou será o que disse de Tereu
sua metamorfose e dos presentes
que lhe deu Filomela, com a fuga
que ele fez para os ermos, com as asas
que a infeliz ganhou para voar
por cima dos abrigos que lá tinha?
Tudo o que Febo outrora compusera,
com o ditoso Eurotas o cantando
e logo o transmitindo a seus loureiros
cantou então Sileno, com os vales
em seu eco o lançando para os astros
até chegar a hora da recolha
de ovelhas ao redil e despontar
Vésper no céu para pesar de Olimpo.

(de Obras de Virgílio, tradução do latim do Prof. Agostinho da Silva, Temas e Debates, 1997)

12.10.05

[hoje é dia]

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO


jubilação de nomes

ajuda-nos, Deus,
a sair do labirinto das coisas (mal)ditas,
a meada da retórica
que debita a máscara

tu que és a graça e o rigor
das linhas desenhada,
a onda que regressa e que advém
neste intervalo de terra prometida
e de deserto

empresta ao nosso ouvido
a graça da rocha mãe do solo,
a cedência ao ritmo do que vem de longe,
e se não prescreve

e que a tua alegria permaneça

(de dizer DEUS ao (des)abrigo do Nome, Difusora Bíblica, 1991)

11.10.05




RUY VENTURA

memória


mal oiço o som do alaúde em tua casa.
não consigo ver a pomba
voando sobre a cinza,
no sepulcro da ruína e desta alma.
exumei com os olhos
o mosaico que rodeava, talvez, esse coração ?
mergulhado na água e na melodia.

séculos depois, encontro esse rosto
tão cedo escondido.
desenhado no mármore.
como numa fotografia.
esse sorriso escavando a penumbra da nave ?

a iluminação das lágrimas
no interior do vidro.

Mérida - estela funerária de Lutatia Lupata (séc. II d. C.)

(do inédito Habitação do Tempo, gentilmente enviado pelo Autor)

2.10.05

DINIS MACHADO

Qual é o lado cómico disto?


Uma das primeiras grandes revelações da minha infância, ao surpreender as coisas, foi verificar que me interrogava, invariavelmente, assim: qual é o lado mais cómico disto? Os desfiles militares, as cerimónias religiosas, os cumprimentos obsequiosos e confrangedores, os adereços excessivos da autoridade, as exigências rígidas da hierarquia, os compromissos artificiosos. E eu: qual é o lado cómico disto? Daí a fazer a pergunta interior em qualquer situação dramática, foi um passo. A doença, a brutalidade, a estupidez, a intolerância, a maldade pura, a alucinação despótica - até o leito do sofrimento, o leito da morte. E eu: qual é o lado cómico disto?

(...)

Quando a infância começou a ser perturbada por desentendimentos mais amplos com o real, insisti na defesa da minha alegria, do meu prazer de viver. E até na dor que retirava dos que amava (dos meus avós, das minhas velhas tias, por exemplo), e até na morte, que sempre me surpreendia, protegia-me com essa frase defensiva, essa armadura de sol, de chuva e de subir a escada a quatro e quatro.
Creio que os cómicos do cinema me compreendiam melhor do que ninguém. Habitavam o coração do desastre com a desenvoltura, o corpo de borracha e a paciência evangélica dos grandes missionários da naturalidade.

(excerto de Reduto Quase Final, Bertrand editora, 1989)

1.10.05

PAULO TEIXEIRA

DECLÍNIO DO TURISMO


Estas praias vazias enfrentam confundidas
o deus ocioso das águas e o outono: o mar
implicado com a nossa sede e as nuvens
que, ausentes, nos oferecem ainda um tardio verão.
Toda a fauna partiu: os senhores devolutos
do mundo deixaram-nos o vento que nos afaga
hoje o rosto e as areias desertas.

Esses oportunos visitantes do estio, poetas e aves
que as suas odes ineficazes escreviam às portas
do entardecer, tornaram a casa para consumirem
a substância do tempo sob os rigores e o Inverno
de outras paisagens, louvando com devoções outonais
a sua escrita, o tempo, a imagem insegura da decadência.

Cada coisa declina no lugar da sua origem.
Conhecemos frente ao Mediterrâneo a perplexidade
de um mundo que alcança a sua última disposição,
sem nela poder acreditar. Terra sem ombros e sem timão
que se afunda dia a dia no vale excessivo de estrelas
que nos esconde de nós o Lúcifer celeste.

(de Conhecimento do Apocalipse, & etc, 1988)

28.9.05

Não estou presente hoje na Terra da Alegria, mas Vital Moreira, no Causa Nossa teve a gentileza de publicar uma mensagem que lhe enviei ontem procurando estabelecer um paralelo entre os encontros do Papa com a Fraternidade S. Pio X e com Hans Kung.
Vital Moreira responde referindo que "foram precisos dois meses para que Bento XVI 'compensasse'" um encontro com o outro, acrescentando a dúvida de este se ter devido "às reacções negativas causadas pelo primeiro", mas não repara que na notícia da Agência Ecclesia a que faz ligação se diz que, segundo o próprio Kung, "o encontro do passado sábado resultou de uma troca de correspondência com o Papa, começada pouco tempo depois da eleição de Joseph Raztinger" (sublinhado meu).
Por outro lado destaca o facto de desta vez não ter havido "os votos de trabalhar em conjunto para uma 'perfeita comunhão'" como com os herdeiros de Lefevre. Ora, tal coisa seria muito de estranhar com o teólogo, pois este, ao contrário dos dirigentes da Fraternidade S. Pio X, não está em situação de excomunhão.
[hoje é dia
da
Terra da Alegria]

DOM HÉLDER CÂMARA

TERRA, IRMÃ TERRA!


Ensina-nos
a continuar a Criação,
ajudando as sementes
a multiplicar-se
preparando alimento
para os homens
e os animais!

Ensina-nos
a causar a alegria
que não te cansas de oferecer
quando viajantes cansados te descobrem
como sinal próximo de chegada!

Ensina-nos
a criar o horizonte
numa imagem belíssima
da grandeza da Criação!

Ensina-nos
a aceitar a mediação
de quem nos quer unir a irmãos,
como aceitas o papel da água
que une terra a terra,
por maiores que sejam as distâncias!

Como te sentes nos desertos?
com que visão contemplas o homem
que, sendo capaz de transformar
desertos em terra fértil,
está preferindo ser
terrível criador de desertos?

Como te alegras
com a chuva quete fecunda
e como te afliges
com as chuvas que te alagam,
destruindo plantações,
casas e vidas
de animais, de plantas, de homens?

Que lição imensa
nos dás,
Terra,
mais que irmã:
mãe-Terra!

(de Quem não Precisa de Conversão?, edições Paulinas, 1987)

24.9.05

"POESIA" AUTÁRQUICA

É urgente, nestas autárquicas, fazer o levantamento de frases de campanha que utilizam as palavras amor, coração e o verbo amar.

23.9.05

AMADEU LOPES SABINO

- Não busco adeptos - retorquiu Laureano após um silêncio. - E o proselitismo é algo que intelectualmente me repugna. Sim, entendo o artista, sobretudo o pintor, como um legislador, em certa medida, até, como um artífice de normas por via ditatorial. A criação artística não é um fenómeno colectivo mas solitário. Por isso a democracia não me parece possível na criação artística. É colectivamente que os comerciantes negoceiam, os sacerdotes rezam, os médicos curam e as prostitutas se oferecem. Desconfio contudo das associações de artistas. E sempre considerei as obras a duas mãos meros divertimentos pueris.

(excerto de Os Relicários, in O Retrato de Rubens, publicações Dom Quixote, 1985)

20.9.05

ÀLEX SUSANNA

NOCTURNO


Na sombra qualquer passo significa.
Fecha-te e escuta:
verás surgir na obscuridade
as brasas da memória,
a gotejar de um deserto,
o cheiro húmido.
Fecha-te e escuta
e não esperes nada,
tudo te será dado:
na sombra os triunfos
contam-se por clarões,
e o clarão basta
no fundo do coração
para chegar a compreender.

(de Palácio de Inverno, 1987, in Os Anéis do Tempo, tradução de Egito Gonçalves, Limiar, 1995 - os olhos e a memória)

18.9.05

ALBERTO DE LACERDA

ON HEARING MARIANNE MOORE
READING HER POETRY


Um pássaro Uma voz atravessada
Pelas nuvens da eternidade
Um pássaro Princesa
Suave dos animais estranhos
Das rochas dos límpidos encontros
Dama do esplendor consistente
Bronze preso à vida por um fio
gieseking Scarlatti
Marianne Moore

Austin,
2 de Maio de 1968

(da sequência Mecânica Celeste, in Oferenda II, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994)
MARIANNE MOORE

PARA UMA AVE DE PRESA


Convéns-me, pois nem sequer te tomo a sério,
e não ficas cega pela palha que rodopia
ao ser trazida de uma meda pelos ventos.

Sabes pensar e o que pensas dizes
com muito do orgulho e fria firmeza
de Sansão, e ninguém ousa deter-te.

O orgulho assenta-te bem, tão empertigada, ave colossal.
Nenhuma capoeira te faz parecer absurda;
às tuas garras atrevidas são fortes, contra a derrota.

(de Poemas de Marianne Moore e Elisabeth Bishop, tradução de Maria de Lourdes Guimarães, Campo das Letras - colecção o aprendiz de feiticeiro)
ALBERTO DE LACERDA

ELEGIA ESCRITA EM NEW ORLEANS
A 6 DE ABRIL DE 1968


A todos os negros assassinados
Humilhados e ofendidos

Hoje não estamos sós
Há cinco músicos negros tocando na noite
Hoje não estamos sós
Há um luar negro cobrindo a sucessão
Das ondas incompreensíveis
Mar de luto
Ó mar americano
De luto

Hoje não estamos sós
Há uma canção espessa
(Espessa como o sangue)
Redimindo a noite

Há cinco músicos negros

Há uma cantora negra
Sozinha na noite
No meio de nós

Hoje não estamos sós
Há cinco músicos negros tocando na noite
Irmãos da noite

Minha irmã
Meus irmãos

(da sequência Mecânica Celeste, in Oferenda II, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994)

17.9.05

[o canto e a ceifa VIII]

DANIEL FARIA

EXPLICAÇÃO DA CEIFA


Colho espigas
e teço a minha teia

amarro espigas molhos de espigas
ato e desato o cabelo das aranhas

(de Explicação das Árvores e de Outros Animais, Fundação Manuel Leão, 1998)

16.9.05

[o canto e a ceifa VII]

SOARES DE PASSOS

MARIA, A CEIFEIRA
(imitação de Uhland)


«Bons-dias, Maria: da lida do prado
«Nem mesmo te afastam cuidados d'amor,
«Se ao fim de três dias mo deixas ceifado
«A mão do meu filho te quero propor.»

Promessa é do rico, soberbo rendeiro:
Maria, oh! quão ledo seu peito bateu!
Seus olhos brilharam, seu braço ligeiro
Mais forte nas messes a foice moveu.

Soou meio-dia: que ardente secura:
Já todos demandam a fonte, o pinhal;
Somente nos ares a abelha murmura:
Maria não pára, que é sua rival.

O sol esmorece, bateram trindades:
Debalde o vizinho lhe grita: bastou!
Zagais e ceifeiros se vão às herdades
Maria, coa foice, lidando ficou:

O orvalho desliza; desponta a seu turno
A estrela no espaço, na selva o cantor;
Maria, insensível ao bardo nocturno,
A foice incansável agita ao redor.

Os dias e as noites assim por tais modos,
Nutrida d'amores, mal sente passar,
Três dias findaram: oh! vinde ver todos
Maria ditosa d'esp'rança a chorar.

«Bons-dias, Maria; já tudo ceifado!
«Lidaste deveras: a paga hás-de ter.
«Enquanto a meu filho, foi graça o tratado;
«Quão loucos e simples o amor nos faz ser!»

Tal disse, e passava... no peito constante,
Ai pobre Maria, que transe cruel!
Teu corpo formoso tremeu vacilante,
E exausta caíste, ceifeira fiel.

Um ano a coitada, sozinha consigo,
Vivendo de frutos, vagou sem falar...
No prado mais verde cavai-lhe o jazigo:
Ceifeira como esta jamais heis de achar.

(de Poesias, prefácio de Álvaro Manuel Machado, Vega, 1983 - colecção Mnésis)
[o canto e a ceifa VI]

TERESA AICA BAIROS

canto mudo


eu sou a ceifeira.
seara fora colho braços de trigo
e joio também.
a minha lida:
trabalhar os montes que há
e os mais que desencanto.

se um dia perguntarem
que razão há para desencantá-los
não responderei
sei
mas não digo
- não responderei.
o murmúrio da terra ao ouvido das horas.
não tenho mais razões para desencantar
que a vida.

(de Luva descalça, incluído em Blémias, Ciápodes e Licornes - textos 2000 colectânea jovens criadores, co-edição do Clube Português de Artes e Ideias e da Íman edições, 2001)

13.9.05

[o canto e a ceifa VI]

FERNANDO PESSOA

«Ela canta, pobre ceifeira,»

(versão publicada na revista ATHENA, nº 3 - Dezembro de 1924)


Ella canta, pobre ceifeira,
Julgando se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anonyma viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E ha curvas no enredo suave
Do som que ella tem a cantar.

Ouvil-a alegra e entristece
Na sua voz ha o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p'ra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente stá pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência d'isso! Ó céu!
Ó campo! ó canção! A sciência

Pesa tanto e a vida é tam breve!
Entrae por mim dentro! Tornae
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passae!

(da 2ª edição fac-similada, Contexto, 1994)
[o canto e a ceifa V]

FERNANDO PESSOA

«Ela canta, pobre ceifeira,»

(versão enviada a Armando Côrtes-Rodrigues em 19 de Janeiro de 1915)

XI

Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez...
Canta e ceifa, e a sua voz cheia
De alegre e anónima viuvez

Flutua como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar...

Ouvi-la alegra e entristece...
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões p'ra cantar que a vida...

E com tão nítida pureza
A sua voz entra no azul
Que em nós sorri quanto à tristeza
E a vida sabe a amor e a sul!

Canta!... arde-me o coração...
O que em mim ouve está chorando...
Derrama no meu peito vão
A tua incerteza voz ondeando...

Canta e arrasta-me p'ra ti,
P'ra o centro ignoto da tua alma,
E que um momento eu sinta em mim
O eco da tua alada calma...

Ah! poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência
E a consciência disso! Ó céu,
Ó campo, ó canção,... a ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve...
Entrai por mim dentro, tornai
Minha alma a vossa sombra leve...
Depois, levando-me, passai...

(in Cartas a Armando Côrtes-Rodrigues, introdução de Joel Serrão, 3ª ed: 1985 - ortografia actualizada)

12.9.05

[o canto e a ceifa IV]

BUSON

Na água profunda
assobia uma foice
ceifando as canas

(versão de Adelino Ínsua, in O Crisântemo Branco - antologia de haiku, Pedra Formosa, 1995)
[o canto e a ceifa III]

OSSIP MANDELSTAM


Quando sai para os céus a lua citadina,
E a noite prenhe de cobre e mágoa cresce,
E de lua a cidade espessa se ilumina,
E a cera canora ao tempo rude cede,

E na sua torre de pedra o cuco chora,
E a pobre ceifeira - no mundo dessangrado -
Ajeita de leve agulhas da sombra enorme
E as lança, palha amarela, no sobrado...

(de Guarda a Minha Fala para Sempre, tradução Nina Guerra e Filipe Guerra, Assírio & Alvim, 1996)

11.9.05

[o canto e a ceifa II]

WILLIAM WORDSWORTH

The Solitary Reaper

Behold her, single in the field,
Yon solitary Highland Lass!
Reaping and singing by herself;
Stop here, or gently pass!
Alone she cuts and binds the grain,
And sings a melancholy strain;
O listen! for the Vale profound
Is overflowing with the sound.

No Nightingale did ever chaunt
More welcome notes to weary bands
Of travellers in some shady haunt,
Among Arabian sands:
A voice so thrilling ne'er was heard
In spring-time from the Cuckoo-bird,
Breaking the silence of the seas
Among the farthest Hebrides.

Will no one tell me what she sings? -
Perhaps the plaintive numbers flow
For old, unhappy, far-off things,
And battles long ago:
Or is it some more humble lay,
Familiar matter of to-day?
Some natural sorrow, loss, or pain,
That has been, and may be again?

Whate'er the theme, the Maiden sang
As if her song could have no ending;
I saw her singing at her work,
And o'er the sickle bending; -
I listen'd, motionless and still;
And, as I mounted up the hill,
The music in my heart I bore,
Long after it was heard no more.



A CEIFEIRA SOLITÁRIA

Só ela no campo vi:
solitária de altas serras,
ceifa e canta para si.
Não digas nada, que a aterras!
Sozinha ceifa no mundo
E canta melancolia.
Escuta: o vale profundo
Transborda à de harmonia.

Nunca um rouxinol cantou
em sombras da Arábia ardente
ao que exausto repousou
mais grata canção dolente;
ou gorjeio tão extremado
se escutou na Primavera,
cortando o Oceano calado
entre ilhas de Além-Quimera.

Quem me dirá do que canta?
Será que o que ela deplora
é antigo, triste e distante,
como batalhas de outrora?
Ou coisas simples são
do quotidiano viver?
Essas dor's de coração,
que já foram e hão-de ser?

Seja o que for que cantara
é como infindo cantar,
que a vi cantando na seara,
no trabalho de ceifar.
Sem falar, quieto, eu escutava
e, quando o monte subia,
no coração transportava
o canto que não se ouvia

(tradução de Jorge de Sena, in Poesia de 26 Séculos)
[o canto e a ceifa I]

DANIEL FARIA

Encosto-me à morte sem amparo ou sombra
Como o grão alheio-me da flor que virá e venho
À superfície do teu sonho

Como se acordasse a mão que semeia
No coração lavrado de quem faz a ceifa
Rebento no interior da morte como o trigo

Rebento no interior do trigo
E de qualquer planta que se assemelhe a ti

(de Explicação das Árvores e de Outros Animais, Fundação Manuel Leão, 1998)

9.9.05

WILLIAM BRONK

A IMPRESSÃO

Tem-se a impressão de que tudo está a chegar
ao fim. Não, não é isso. Tem-se a impressão
que é como uma guerra em que a última batalha
é combatida muito depois do armistício
ter sido declarado. A iminência liga-nos
a uma desgraça passada. Olha-se para trás,
para um tempo, qualquer tempo, qualquer coisa
que já aconteceu. Olha, ainda estamos aqui,
mas repara que o nada do momento aconteceu
há muito, um tempo, tanto quanto se pode saber,
que não coincide com o tempo em que isso
aconteceu. Houve alguma vez esse tempo?
Outrora, deve ter havido. Quando acabará?

A METONÍMIA COMO ACESSO AO MUNDO REAL

Ou o que se sente deste mundo é o "que"
apenas deste mundo, ou o "que" do qual,
de vários possíveis mundos - que "que"?
- alguma coisa do que se sente pode ser
verdade, pode ser o mundo, o que é,
o que se sente. Quanto ao resto,
tréguas são possíveis, a tolerância
dos viajantes, comer pratos estrangeiros,
tentar palavras que distorcem a língua,
sentir esse tempo e esse lugar,
sem pensar que esse é o mundo real.

Certo, todos os relógios nos dão a hora
local; certo, "aqui" é qualquer lugar
onde se limita e se preenche um espaço;
certo, nós fazemos um mundo: mas alguma
coisa existe nele, está nele contida,
alguma coisa real, algo que se possa sentir?
Uma vez, numa cidade bloqueada e cheia,
vi a luz bater bem fundo no vazio da rua,
palpável, azul, como se tivesse vindo,
digamos, do mar, uma pureza de espaço.

(tradução de Silva Carvalho, in Ícones, Quatro Elementos editores, 1994)

4.9.05

FERNANDO GUERREIRO

A câmara clara


Desenganem-se os crédulos, a poesia não é um espelho
nem nela o sujeito passa por um processo de revelação
compatível com o impressionismo mimético tão comum
nas fotografias. Se não conseguimos escapar à mecânica
de arrasto pela qual um indivíduo, mal pega na caneta,
passa para a palavra, no entanto, talvez seja pela iconicidade -
efeito de relevo na linguagem, pelo próprio recorte das palavras
na sua espessura semântica produzido - que a estranheza
da poesia melhor nos surpreende e conjuga. Poder-se-á
pela palavra contrariar o carácter nostálgico da arte?,
o que nela existe de evocação de uma presença antiga
e erodida? Traindo-nos, a poesia ainda nos autoriza
uma forma branda de recusa: a dos frutos que se oferecem
aos favores do clima sem esperar o consolo de uma mão
que os proteja da sombra em que os contornos, na dúvida, se retiram.

(de A Balada de Liverpool e Bruxelas, in Bumerangue 04 - colecção Guarda-Rios)