30.12.13

JOANA DA GAMA


Soneto

Quem consigo puder o desejo enfrear
Estará livre de esperanças compridas
Que com suas tardanças consumem as vidas
E a todos estados dão muito pesar,

E o tempo se nos vai sem nos aproveitar.
De tamanhas mágoas andemos temidas,
Pera quantas vierem bem apercebidas,
Por que com as virtudes nos possamos pagar

Com desejo perfeito de as sempre seguir.
Julguemos o porvir pelo que é passado,
Que tudo a ua medida se há-de medir.

Não gastemos o tempo mal gastado,
Que esta é a perda que é mais de sentir,
Quem da graça de Deus estiver dotado.


(de Ditos da Freyra. Ditos diversos feytos por hua Freyra da Terceyra regra. Nos quaes se cõtê sen têças muy notáveis, e avisos necessarios, Évora, André de Burgos, 1555 / reproduzido em Uma Antologia Improvável - A Escrita das Mulheres (Séculos XVI a XVIII), organização de Vanda Anastácio, Relógio d'Água editores, 2013)

29.12.13

JOSÉ AUGUSTO SEABRA


DAS CINZAS

Lançar ao largo as cinzas diluídas
onde se esvai o rasto de entrever
o sonho ténue onde bordeja o início
da luz dourando a margem a morrer.

É isto indício ou nem sequer o resto
do que não foi nem há-de vir a ser?


DO INDEFINIDO

Enseada do fim
debruada nas águas
efémeras, sem mitos
nem mágoas.

No aqui
do nada
indefinido.


DO AZUL

Da franja diluída
que ao vento se incendeia
não toco nem a esquiva
transparência. Clareia
o fogo a lume brando
do rubor que tacteia
o azul e desmaia.


(de Do Nome de Deus, Instituto Cultural de Macau, 1990)

26.12.13

FERNANDO ECHEVARRÍA


1

ENTRARAM PARA ONDE A DESMESURA,
abstraindo a importância de lugares,
os absorveu na drástica coluna
de um fogo repentino a desastrar-se.
E a dirigi-los pela noite súbita
para um limbo de incêndio inominável
em que só ecos de negrura e música
ajustariam cunhos singulares.
Não haveria transparência avulsa.
Apenas a de esquecimento em fase de
sobreviver à bruma
em cujo esquecimento se afastasse.
E, com ele, se ausentaria a chusma
de gente, de animais, coisas e árvores.
Iriam para mais zona nenhuma.
Nela, invisível, erguer-se-ia a idade
de pulsos convincentes e de lúcidas
pungências a abismar-se
pela abstracção de puridade alguma.
Para ausência infinita de lugares.

2

MAS ERA AUSÊNCIA OPERATIVA. DE ONDE
surdiam pulsos contundindo, quando
a compenetração trazia o longe
à transparência intemporal de páramo,
regido só por dimensões tão doces
que retinham apenas sobressaltos.
O sopro aí sobressaía imóvel.
Abria a sua doação de fausto
a que aderia o homem
depois de ao tempo se eximir e ao espaço.
E depois de sofrer mais horizontes
cada vez mais extensos - ou mais altos? -
de onde ausentar-se convocava. E a noite,
convocada também, sumia o rasto
de quanto se sumira, abrindo, a monte,
antevisão possível, recuando.

3

E O RECUO CONVOCAVA AINDA,
retendo, embora, quantos convocara
nessa extensão de ausência operativa,
aqui tão perto de a uma tal distância.
Apontavam aí marcos de via
e de pungência jubilosa. Farta
expunham a visão funda de míngua
que doação igual proporcionava.
Abstrusamente e por um triz ubíqua
ia chegando a pulsação. A mágoa
alargava-se à conta da alegria,
recolhendo as presenças alheadas
daqueles, convocados, que seguiam
mantendo-nos afins, à borda de água.

4

ENQUANTO SE AUSENTAVAM NOS ABRIAM
a feliz novidade de um espaço
de onde somente se alargava a vista.
E em que tempo algum era contado.
Essa ausência, contudo, nos retinha
o impulso veemente, o luto em rapto
daquele, jubiloso, que partira
deixando-nos, no entanto,
o pulso contundente. A sua ida
pungindo o ponto críptico do campo
que nos reduz a uma atenção tão limpa
que nela avulta o espigão do trânsito.
Como avulta também a campa lisa,
a compenetração e os carvalhos
a aparecer do fundo dessa vida
que traz a lume a nitidez sem espaço.



(de In Terra Viventium, Afrontamento, 2011)

24.12.13



RAUL DE CARVALHO


O MEU MELHOR POEMA…

Claro que era perfeitamente natural
que eu escrevesse agora
o meu melhor poema.

Que interrompesse
a leitura interrompida
por acção e graça
de qualquer fortuita
eventualidade:
um cachimbo vazio
uma casca de noz
a notícia de que
finalmente chegou
o amigo do estrangeiro
a falta absoluta de sono
ou por exemplo
um assobio.

Vibrante claro matinal musical festivo categórico
absolutamente vivo
absolutamente
um assobio.

Que veio
que entrou sem eu saber como
(nunca se sabe como)
pelas pernas destapadas
dos meus ouvidos
pelas ancas
coléricas
em que se apoiam
os meus ouvidos
pela parte de trás
dos meus ouvidos
(bolas! as coisas são o que são
e quem mente não diz
a verdade).
Um assobio que passeia.
(Lembro-me de um homem que passeia
pela rua
com um galgo
pela rua à hora
em que as pessoas despem
suas camisas de dormir
e pedem a Deus
muitas coisas.
O homem que passeia pela rua com um galgo
também pede a Deus muitas coisas.)

Pelos pêlos encaracolados
dos meus ouvidos
pelos orifícios por onde se cruzam
se estendem se apalpam se complicam
ouvidos e pernas pernas e ouvidos
ouvidos com pernas pernas com ouvidos.
(Por que diabo a esta hora
há alguém que se lembra
de assobiar,
a esta tão absurda hora,
a esta hora tão cheia
de cravos e ruas e conversas e noite
a esta hora da noite sem movimento
hora de peões abrigados à chuva
contando uns aos outros
pequenas histórias
pequenas e maravilhosas histórias
para passar o tempo
a esta hora em que tudo
é mentira é mentira!
Quem será que se lembra?)

Nos tempos de el-rei
coração-de-leão
morreu um menino
de coração puro.
Quem será que se lembra?
Que foi
que aconteceu?
Por que razão
à vizinha do lado
lhe deu uma síncope
ao operário lhe apareceu
de repente trabalho
Jesus-Cristo apareceu
e não foi um milagre
há santos e santas na corte do céu
e há gosto por todas as coisas da vida
por que razão o suicida
gostou da água (— Quentinha!, disse ele, — Quentinha!)
por que razão o amor
é a coisa mais natural
que pode haver?
por que razão
alguém se pôs
a assobiar???

E eu, que estava tão sossegado
tão dentro de mim
tão bem instalado aqui dentro
tão longe dos meus amigos
tão cheio de boas e honestas obrigações
tão humilde para o olhar do próximo
tão disposto a perdoar a dar a concordar a perder
a tudo o que vocês quiserem
tão atrapalhado por não saber onde pôr as mãos
tão arrependido de me levantar tarde
tão resolvido definitivamente
a acabar: acabou-se: Acabar
com essa repugnante
história dos pontapés.
Eu que neste momento
da lembrança
só tinha a lembrança
dum ponto qualquer
vazio e total
diferente e igual
conforme e fatal
onde não fazer
mal a ninguém
que me fez mal.
Eu que estava mesmo quase convencido
de que a poesia para ser boa
não deve perturbar a sagrada
reunião da família.
Eu, que não sou forte em metáforas,
e quero e adoro e odeio
a realidade.

Por que diabo aquele tipo
se lembrou de mim, a esta
hora?

Sempre, sempre esta suspeita
de música...


(in Pequena Antologia do Natal, edições Mic, 1977)

23.12.13

[no dia em que passam 125 anos sobre o corte da orelha de VAN GOGH] 

FERNANDO GUIMARÃES


VAN GOGH: «AUTO-RETRATO COM A ORELHA LIGADA»

O corte numa orelha. Esta rasura
que pode ser da morte, tão vizinha
de todo o corpo, enquanto principiam
as colheitas que vinham revelar

a cicatriz mais perto das searas,
o ruído que passa pela gaze
porosa, as ligaduras que no rosto
o fecham para sempre, mesmo quando

não existem sequer. Qualquer imagem
é sempre igual porque nela se via
aquilo que em segredo procuramos

até que se encontrasse o mesmo sítio
onde fique contida a própria dor
só para ser arada nestes campos.



(de Os Caminhos Habitados, Afrontamento, 2013)

17.12.13

GHÉRASIM LUCA


OS GRITOS VÃOS

Ninguém a quem dizer
que nada temos a dizer
e que o nada que dizemos
continuamente
o dizemos a nós mesmos
como se nada nos disséssemos
como se ninguém nos dissesse
nem mesmo nós
que nada temos a dizer
ninguém
a quem poder dizê-lo
nem mesmo nós

Ninguém a quem dizer
que não temos nada a fazer
e que nada mais fazemos
continuamente
o que é um modo de dizer
que não fazemos nada
um modo de não fazer nada
e de dizer o que fazemos

Ninguém a quem dizer
que não fazemos nada
que nada fazemos
senão o que dizemos
nada quer dizer



(tradução de Miguel Serras Pereira, in Sud-Express - poesia francesa de hoje. Relógio D'Água, 1993)

16.12.13

JOSÉ AGUSTÍN GOYTISOLO


AQUELA FLOR

Viste que nada era duradouro
desde muito menino. Que uma flor
se abre se arroga de aroma e brilha
e cai depois no jardim.
E ainda que outras flores logo apareçam
- muito semelhantes - nenhuma delas
será a flor que despertou
os teus sentidos: aquela flor.
Pessoas meses chuvas e ânsias
se escaparam de ti em bicos de pés
para não te magoarem. Mas tu
aprendeste com a flor única
o amor ao que perece
e a ferida do que já morreu.



(tradução minha; original de Como los trenes de la noche, 1994)

15.12.13

DANIEL FILIPE


CROMO

Esta janela dá
para coisa nenhuma
Não é janela, é vago
orifício na bruma.

Orifício por onde
se alicerça de espuma
a líquida vereda
que vai a parte alguma.

E onde aflora a paisagem
certa-voz matutina,
que se quebra de espanto
feita coisa, dor fina.

E como dor resvala
e, dócil, se insinua
entre a camisa leve
e a pele do Poeta, nua.


(de Pátria, Lugar de Exílio, 1963)

14.12.13

EMILY DICKINSON


The Poets ligh but Lamps
Themselves — go out — 
The Wicks they stimulate —
If vital Ligh

Inhere as do the Suns — 

Each Age a Lens 
Disseminating their 
Circunference —

[c. 1864]


Os Poetas acendem Lâmpadas —
Mas eles próprios — se apagam —
As Torcidas que espevitam —
Se Luz vital

Como aqui são as dos Sóis —
As Eras Lentes
Disseminando a deles
Circunferência.


(tradução de Jorge de Sena, in 80 Poemas, edições 70, 1979)


Não faz mais do que acender Lâmpadas —
O Poeta — e vai-se embora —
São os Pavios que ele activa —
Se a Luz vive

Sempre, como um Sol —
Cada Época é uma Lente
Disseminando a sua
Esfera —


(tradução de Nuno Júdice, in Poemas e Cartas, Livros Cotovia, 2000)


Os Poetas apenas ateiam Chamas —
Eles próprios — extinguem —
Os Pavios que acendem —
Se a Luz vital 

E inerente como nos Sóis —
Cada Idade uma Lente
Disseminando-se
Circularmente —


(tradução de Cecília Rego Pinheiro, in Esta é a Minha Carta ao Mundo e outros poemas, Assírio & Alvim, 1997) 


Os Poetas só Lâmpadas acendem —
Eles próprios — extinguem-se —
E os Pavios que estimulam —
Se a Luz da vida

De si mesma se gera como os Sóis —
Cada Era uma Lente
Disseminando a sua
Circunferência —


(tradução de Ana Luísa Amaral, in Cem Poemas, Relógio d'Água, 2010)


9.12.13

DELFIM LOPES


XI

Sei bem que escrevo
com requebros obsoletos
de uma forma antiquada
mas eu creio fazê-lo
do único modo correcto
ainda possível hoie
ou seja
tratando o momento
o instante presente
como se já fosse passado
esvaído entre os dedos
como areia ou como água
é-me visceralmente indiferente
aliás escolhe tu mesmo
doravante a imagem ou a
metáfora que mais te apraz

tampouco percebas



(de No cumprimento do devir, edição de autor, 2013)

8.12.13

BREYTEN BREYTENBACH


HÁ UM PÁSSARO IMENSO...

há um pássaro imenso meu amor
talvez um cisne selvagem
ou um albatroz cativo
ou falcão da montanha meu amor
de imenso e luminoso pico de neve

o seu rumo nocturno não podemos vê-lo
pois negro é o seu peito e o seu bico
mas o seu canto vibra como uma estrela

o dorso, e as ósseas penas, são azuis
e assim, também de dia não o vemos
porque voa, na altura, de ventre virado ao sol

dele, apenas, por vezes, duas sombras
atravessam teus olhos meu amor

dúbia é a cor da cor do meu amor
escuro rondando o escuro, noite minha
e sempre, sempre entre os meus olhos e eu


(tradução de Mário Cesariny, in Enquanto Houver Água na Água e outros poemas, Publicações Dom Quixote, 1979)

7.12.13

VIRGÍLIO DE LEMOS


CANTEMOS COM OS POETAS DE HAITI

Cruzo os braços, Baby, e deixo-me ficar
Apreensivo e triste, meditando:
Tu, Baby, e os poetas nossos irmãos
Que escrevem cânticos no Haiti,
Sabem da vida incerta e vazia
Dos negros das ilhas e Américas
Dos que sofrem em África e Oceânia.

Lembras-te daquele poema universal
Que falava de desumanidade?
Lembras-te dos segredos nas entrelinhas
Dos poemas verticais da Noémia de Sousa
Sempre em papel amarelo?

Ah, se tudo fosse como nos sonhos belos
Cheio de romance e fantasia doce
Não haveria, Baby, o desespero
Nos cânticos dos poetas de Haiti
Nem segredos havia, fundos de angústia
Nos poemas verticais de desespero!

Ah, nem tu, Baby, nem mesmo eu
Faríamos da poesia um cântico triste
E só falaríamos de paz, amor,
E numa sede constante do azul do céu!
Mas se é dor o mundo que nos cerca,
Cantemos com os poetas de Haiti
Uma canção amarga que se não perca,
Cantemos em uníssono, porque lá ou aqui,
Os segredos são iguais, fundos de angústia,
E os poemas verticais, também de desespero.



(de Poemas do Tempo Presente, 1960)

5.12.13

[ao saber da morte de NELSON MANDELA]

LEOPOLD SÉDAR SENGHOR


TUA CARTA MINHA CARTA

Tua carta minha carta, e se fosse impossível
Se Hitler se Mussolini, se a Rodésia a África do Sul, o parente português
Se se e mais se, mas nós temos o telefone branco
Não, o vermelho. Satélites rodando em torno da Terra-Mãe.
Se é que rodam mas que importa? Através dos negros espaços estrelados
Através dos muros as cadeias de sangue, através da máscara e da morte
Temos o telefone da aorta: o nosso código é indecifrável.



(tradução de Luiza Neto Jorge, in Poemas, Editora Arcádia, 1977)

1.12.13

EGITO GONÇALVES


OS VEGETANTES

Continuam aqui
roendo as unhas!

Substituem as unhas por poemas
(ou cafés, futebol, anedotário)
e estilhaçam espelhos que na luz
ao seu devolvem a cruel imagem.

Vidrado limo o rosto
de rugas sem memória
assistam à vida como um filme:
disparar sobre a tela é proibido
e além do miais inútil.

Curvam ao solo os ombros
escoriados; curvam-nos para
duradoiras urtigas, seixos
sem horizonte, epitáfios
de lama, dezembros, poeira fria.

Se chovem as esperanças não acorrem
a apanhá-las na boca ao ar aberto.
Tijolo articulado a língua balbucia
«É a vida!». Sementes violadas
não germinam.

Em vão os bombardeiam os oráculos
com agulhas de sangue. Nada tentam
para dar vida à fala que utilizam,
ao país do cansaço que entre dentes
ressaca.

E fazem do amor essa triste humidade,
um delíquio formal logo amortalhado.

São dóceis, cibernéticos,
dia a dia premiados
de alguns gramas a mais
no chumbo do pescoço.



(de Poemas Políticos 1952-1979, Moraes Editora, 1980)

30.11.13

PAUL DURCAN


30 DE NOVEMBRO, 1967

Acordei com uma dor de cabeça,
A minha mãe aos pés da cama;
«Más notícias no jornal», disse ela,
«Morreu Patrick Kavanagh».

Depois de uma semana isenta de real
Por fim, instalei-me frente a uma refeição normal;
Estava sentado com uma cerveja e uma sandes de carne
No Mooney's depois da rua que vem da Rotunda.

Por acaso, acabei por sintonizar
A conversa da mesa em frente a mim;
Ouvi um velho do Norte dizer para a mulher
«Era um tipo às direitas, Deus o tenha, não era como nós.»



PATRICK KAVANAGH


Há um ano, apaixonei-me pela funcionalidade de uma ala
De hospital: uma fila de compartimentos quadrados,
Betão, lavatórios - o desespero de qualquer amante de arte -,
Para não falar do modo como o fulano na cama ao lado ressonava.
Mas nada o amor interdita,
O comum, o banal, podem o calor dela conhecer.
O corredor conduzia a uma escadaria e, por baixo,
Ficava a imensa aventura de um pátio com gravilha.

É isto que o amor faz às coisas: a Ponte de Rialto,
O portão principal que o peso de uma carrinha amolgou,
O assento nas traseiras de uma cabana que era um foco de luz,
Nomear estas coisas é o acto de amor e a sua promessa;
Já que nos cumpre registar o mistério do amor sem desconversar,
Resgatar do tempo o passional transitório.



(in Estradas Secundárias - doze poetas irlandeses, selecção, posfácio e tradução de Hugo Pinto Santos, Artefacto Edições, 2013)

29.11.13

JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA


CADERNO

Tudo o que fizemos e dissemos e amámos — ou
talvez nem isso —
cabe num mísero caderno onde o esplendor não
lança os seus raios.
De mais ou menos palavras se faz o tempo de
semear,
mas nenhuma colheita retomará o calor do feno,
nada que se possa tocar com a alegria dos dedos,
nada de inocente e sagrado
que nos deixe adormecer sobre o linho.



(de Agora e na Hora da Nossa Morte, Assírio Alvim, 1998)

28.11.13

MANUEL DE FREITAS


NADA DE NADA
para o José Carlos Soares
Um dia, logo de manhã, entraremos
num cemitério e perguntarás a Antonia
Pozzi se estar morto é mais ou menos
triste do que estes dias arduamente sepultados.
Receando que saibas a resposta, beberei
com Lowry a primeira ou a última tequila,
na certeza de que ambos os adjectivos estarão
certos (um pouco, talvez, demasiado certos).

Assim possa a chuva apagar todos
os versos que escrevemos
para nada, sobre nada, contra nada,
à sombra imensa dos jacarandás
que floriam - distraídos, quase por engano -
no Rossio. E inundavam de luz (nunca
vi uma luz tão escura) as portas
e os umbrais deste cemitério assim.



(de Terra sem Coroa, Teatro de Vila Real, 2007)

27.11.13

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE


Nós inventamos as formas que nos dão alegria. Claro que estar alegre é cada vez mais e cada vez menos o instante. O instante entre o longo tempo em que não estamos de nenhum modo e o tempo do sofrimento que, sendo pouco, é tempo, tão longo. Nós escolhemos as formas da alegria, talvez seja a única coisa que, de verdade, escolhemos no mundo; uma escolha quase sempre sem grande sentido, sem grande valor e sem alguma imaginação; para além de toda a imaginação, sentido e valor, pois trata-se do acto único que mais soubemos e sabemos construir.
A alegria é um estado de coisas bem simples, do tamanho de um bilhete de autocarro que é pequeno e tem números, pouca espessura e, às vezes, um pequeno anúncio nas costas. A alegria tomo-a como uma escolha absoluta, um instante em que compreendo como as coisas são em si mesmas, como as integro na minha vida e como me deixo ser viajado por elas; pelas coisas, pela alegria das coisas.
Há itinerários de alegria, desenhos que traço e que permanecem como uma linha única na minha, na nossa memória. Alegria: coisa distinta, obrigatória, encadeada no corpo de sangue e nervos que não podemos nem queremos deixar de ser.


(excerto de «Mendes», in Uma paixão inocente, Livros Cotovia, 1989)

25.11.13

JOSÉ CARLOS SOARES


Vestes de branco, atravessas um campo de girassóis. Dezembro
é um mês longínquo. Espero-te, algumas murchas
flores na mão que hão-de abrir-se, se
na água de tua boca. Com a fadiga de quem pudera
descobrir-se, sentas-te a meu lado e dormes no meu ombro.
O árido deserto, minha morada, lentamente vai
sorvendo o branco. E a noite cai.
Lembro batalhas ganhas
e, quando acordas, convido-te
à viagem. Sonho, encontro, iniciação, eis
a chave para a vida eterna. Trocamos de água, sementes,
sossegados caminhamos para as árvores. Tantos
os pássaros, dizes, como podem
estas coisas acontecer? Estão ao teu serviço, proponho,
e logo alças voo e te despedes.

Passaram-se três noites em que fiquei ocupado
de mim mesmo. Cantou o galo, uma serpente
visitou-me meiga, mesmo um pastor
se abeirou de mim. Mantive-me quieto. Tentava
descobrir em que morada passaras já
a ser. Foi então que murmurei: ele
é meu amigo e tenho que visitá-lo.
Passado algum tempo, expirei.



(in Amor Luxúria e Morte, Mirto, 1987)

24.11.13

DANIEL JONAS


IMITAÇÃO DE VIDA

A minha vida...
Conquanto a minha vida seja
uma repetição da minha vida,
conquanto imitação da minha
a minha vida
conquanto minha nem pareça
e não, e seja muito e muito mais
do que a queria,
conquanto vivo me experimente enquanto morto
e enquanto morto a mim me sobreviva
a vida não é mais do que perdê-la
e tanto que a perdi pois
me acho num lugar
por insistente inexistente
passando inversamente nos lugares muito mais
da minha insistência em pensá-los...
Prossigo, pois, é mister que assim prossiga,
mas não trago um carinho por mim mesmo,
antes arrasto o móvel por que me tenho
(que peso, meu Deus, de sê-lo)
conquanto imóvel me detenha
e imóvel me seja o que sou
e tanto do que pense ou faça.
Sou tanto aquilo que não pensei de mim...
Sou tanto aquilo que não sou ou não quis
e tanto por tentar...
Sim... as coisas que eram e não foram...
O que mais ardentemente desejei e não cumpri.
As ondas que se foram para nunca mais...
Oh delírio!
A minha cabeça que anda tão perdida...



(de Passageiro Frequente, Língua Morta, 2013)

20.11.13

ANTUNES DA SILVA


A PAISAGEM SÓ

Nem sempre o silêncio é grande
Nas altas faias do rio.
Há lágrimas nos valados
E solidões nos montados,
Nos vastos campos lavrados
O enigma de um desafio.
Do longo beijo nas trevas
Que a noite vai semear,
Nasce uma flor mimosa
Que não é cravo nem rosa
Nem papoila esplendorosa
Como as estrelas do mar.
São os caminhos floridos
Das mais suaves cantigas
Que alguém soube decorar,
Cantando a vida a chorar,
De peitos nus, a sangrar
As nossas dores antigas.
Belas imagens de infernos,
De céus doridos e quentes.
Sementes de terras rudes
Onde medram os açudes
E se cantam as virtudes
Da maioria das gentes.
E é doloroso o cantar,
Tanto como esta amargura
De quem ama com secura
A própria vida futura
Que um dia há-de despontar.
Chorosos sonhos de morte
Que a Planície teve um dia.
Há o arvoredo que grita,
Na sua linguagem aflita,
A sua sede maldita
De sol e de ventania.
Nem sempre o silêncio é grande
Nas altas faias do rio.
Há lágrimas nos valados
E solidões nos montados,
Nos vastos campos lavrados
O enigma de um desafio.



(de Esta Terra que é Nossa, Centro Bibliográfico, 1952 - Cancioneiro Geral)

18.11.13

JOÃO LOPES


POESIA

Pedes mais certeza à poesia
e tens razão em pedir o que todos aprenderam a pedir
porque se não avançamos com precisão
então, como tu disseste, não sabemos para onde vamos
e sem saber para onde vamos
não podemos lá chegar
ignorando que lugar é esse
para onde começámos a caminhar.

Esperas mais transparência da poesia
e tens razão em ansiar por sair do pânico das noites
porque se não celebramos o dia
então, como alguém sugeriu, não merecemos a atenção divina
e sem a protecção da linguagem divina
o destino transforma-se numa feira
mesmo se é verdade que te confunde
que esta estrofe retome o ritmo da primeira.

Anseias por uma poesia sem máscaras
e tens razão em protestar contra todas as mentiras
porque se não nos apresentamos assim mesmo
então, como bem sabemos, desvalorizamos o próprio poeta
e já nos basta que um poeta
chamado Robert Allen Zimmerman
assine Bob Dylan e não desista de o fazer
what the fuck does that mean, man.

Exiges mais rigor à poesia
e tens razão em celebrar a luz das ciências
porque se não nos entregamos à escola
então, como todos sabem, seremos párias sem rosto
e quando se desagrega o rosto
está ameaçada a casa e a identidade
e tudo o que nelas nos garante
o direito de circular pela cidade.

Gostas que a poesia não te desiluda
e tens razão em combater a tristeza nascente
porque se o planeta anda deprimido
então, como eles pediram, organizaremos festas
e ocupados e felizes com as festas
usaremos um anel de diamante
rindo dos touros esquartejados
rastejando numa poça de sangue brilhante.

Desculpa não te seguir
na celebração do mundo certo
os meus deuses são veados
de um poema de sexo incerto.

Aquele cadáver és tu
é isso que a poesia proclama
podes até chamá-lo pelo meu nome
mas não podes obrigá-lo a rimar.



(de Poemas de Guerra, Gótica, 2002)

17.11.13

HAN SHAN


37

Os ricos cheios de trabalho, preocupações,
lutam por tudo, contentam-se com nada.
Mesmo com arroz bolorento nos celeiros,
incapazes de emprestar uma malga a um pobre.
Só pensam nos bens, no lucro,
transformam pano reles em seda de primeira.
Um dia todos irão dar um último suspiro,
só as moscas lhes apresentarão condolências.


(tradução de António Graça de Abreu, in "DiVersos - Poesia e Tradução" - N.º 15, Junho de 2009)

16.11.13

ROGER WOLFE


DE CERTEZA QUE A ELIOT NÃO ACONTECIAM COISAS DESTAS

Fumando um cigarro.
Lendo um livro que comecei
há seis meses. Esperando
que alguém telefone.
A vida esta tarde torna-se-me
tão monótona, tão insuportável
como três gerúndios no início
de um poema.


(tradução minha / original de Hablando de pintura con un ciego, 1993)
LI BAI


A Orquídea Solitária

Uma orquídea solitária
desabrochou um dia num jardim vazio,
rodeada de ervas e tristeza.
Outrora a Primavera tépida,
agora o Outono frio.
A geada embranquece a terra,
murcham as folhas verdes,
extingue-se a flor.
Se não soprar a brisa
quem aspirará as résteas de perfume?


(in Poemas de Li Bai, tradução, prefácio e notas de António Graça de Abreu, Instituto Cultural de Macau, 1990)

12.11.13

JOÃO MIGUEL HENRIQUES


A ideia

e no momento exacto da compreensão
no preciso fulgor do entendimento
esse fugaz instante gasoso
entre a apreensão da língua
e a ideia consagrada
decidi fechar os olhos
apertar os punhos com força
retorcido sobre mim mesmo

era para ver apenas
se poderia suceder
a palavra ser só palavra
nada mais que linguagem
nada mais que um som despido
liberto de todo o sentido
matéria sem peso violento

a ausência da ideia
essa puta opressora


(de Também a memória é algum conhecimento, Lumme editor, 2009)

10.11.13

LEÓN FELIPE


TALVEZ ME CHAME JONAS

Eu não sou ninguém:
um homem com um grito de estopa na garganta
e uma gota de asfalto na retina.
Eu não sou ninguém. Deixem-me dormir!
Mas às vezes ouço um vento de tormenta que me grita:
«Levanta-te, vai a Nivine, cidade grande, e prega contra ela.»
Não faço caso, fujo pelo mar e deito-me a dormir no canto mais escuro da nave
até que o vento teimoso que me segue volta a gritar-me outra vez:
«Que fazes aí, dorminhoco? Levanta-te.»
— Eu não sou ninguém:
um cego que não sabe cantar. Deixem-me dormir!
E alguém, esse vento que procura um funil de trasfega, diz junto de mim, dando-me com o pé:
«Cá está; farei uma buzina com este oco e velho cone de metal;
meterei por ele a minha palavra e encherei de vinho novo a velha cuba do mundo. Levanta-te!»
— Eu não sou ninguém. Deixem-me dormir!
Mas um dia atiraram-me ao abismo,
as águas amargas rodearam-me até à alma,
a ulva emaranhou-se na minha cabeça,
cheguei até às raízes dos montes,
a terra pôs sobre mim as suas fechaduras para sempre...
(Para sempre?)
Quero dizer que estive no Inferno...
De lá trago agora a minha palavra.
E não canto a destruição:
apoio a minha lira sobre a crista mais alta deste símbolo...
Eu sou Jonas.



(tradução de Pedro da Silveira, in Mesa de Amigos, 2ª edição: Assírio & Alvim, 2002)

4.11.13

JOHN MONTAGUE


NÃO HÁ MÚSICA

Digo-te uma verdade amarga e mal sabida.
É mais duro deixar que ser deixado:
Ficar, partir, tudo isso nos dói.

Poderás sempre ter-me para ser culpado,
Ou sonhar que podíamos ter largado;
Do esqueleto da ausência, uma ardente ficção.

Mas tenho de assumir tudo o que fiz
E, se falhar, aceitarei o fardo
Do mal que te causei & a mais alguém.

Arrancar um velho amor pela raiz,
Calcar aos pés as afeições passadas:
Não há música para tão áspera canção.





(in Uma Luz Diferente, tradução colectiva, revista completada e apresentada por Fernando J. B. Martinho, Quetzal, 1992)

2.11.13

THOM GUNN


Sempre ao Redor
O mundo do faroleiro é redondo,
os seus haveres erguendo-se num círculo
— Lá dentro tudo o que o homem pode desejar,
Uma mulher, um rádio, pão, geleia, sabão;
Porém, aos poucos a sua esperança fatigada
Irrompe para viver sobre o som
Que as ondas rodopiando fazem ao rebentar
À custa do seu próprio esforço
— O mundo do faroleiro é redondo.

Interroga-se, subindo a escada em caracol
para dirigir a lanterna que ilumina os barcos,
Por que razão aquilo que sempre foi dele se ergue
Com o rosto voltado para o centro;
Dos livros, amontoados nas mesas, aprendeu
Que os mundos do litoral são também redondos, não quadrados,
Mas lá as coisas dançam com os rostos voltados
Para o exterior: rostos de medo e dúvida?
Interroga-se, subindo a escada em caracol.

Quando há acalmia, são seguros os rochedos
Para fazer um pouco de exercício,
Mas tudo o que faz é fixar os seus olhos
Sobre aquele totem enorme de onde saiu
E onde os pensamentos dançam em redor do que não mudará
— O seu secreto e silencioso desgosto.
As ondas não têm sol, mas são apanhadas pelos raios
Ao rolarem mais abaixo dos seus pés, perverso sal,
Quando, numa acalmia, são seguros os rochedos.




(tradução de Maria de Lourdes Guimarães, in A Destruição do Nada e outros poemas, Relógio d'Água, 1993)

31.10.13

MÁRIO SCHULTE


SEMPRE PEREGRINOS

Chegamos ao fim da noite por um triz.
O pior foi o desvio proibido na recta
veloz da madrugada. As coisas correram
como devem correr a peregrinos. Houve
quem estremecesse perante o inconcebível
da aurora e a osmose impensável.

As fronteiras eram gestos de aves.
Assim pensávamos: a verdadeira terra
é a dos sítios com orifícios onde começam
os túneis cavados em desejos de partir
E os túneis acabam sempre em todas as noites
Impossíveis de chegar. E eis-nos. Sempre peregrinos



(de Uma Estação no Inferno, Edições Litoral, 1986)
JOSÉ MATTOSO

A humanidade atravessou muitas crises. A dos séculos XIV e XV é uma daquelas em que, pelo menos na perspetiva católica, melhor se pode entender o lado transcendente dos acontecimentos. Os dias em que vivemos, nesta segunda década do segundo milénio, são também de crise. Desconhecemos as suas dimensões e as suas consequências, mas parece ser das mais graves que têm atingido a humanidade, porque é universal. As crises nacionais ou internacionais que abalaram o mundo nos séculos passados acabaram por ser superadas. Algumas fizeram muitas vítimas, mas também enriqueceram experiências de vida e ensinaram a encontrar soluções realistas, eficazes e abrangentes. Aquela que aqui tentei mostrar nas suas grandes linhas está praticamente esquecida, mas merece ser recordada. Não trouxe só sofrimento e miséria. Trouxe também ousadia, solidariedade, melhor conhecimento de Deus, fé, esperança e caridade. Dela nasceram alguns santos conhecidos e venerados, como Santa Beatriz, e muitos mais de quem ninguém fala, mas Deus conhece. Dela brotaram muitas experiências de vida radical e, por isso, movimentos renovadores da vida religiosa, da espiritualidade e da piedade dos fiéis. Nela se enraizaram instituições de solidariedade social como aquela, tão portuguesa, das Misericórdias.
Hoje ninguém sabe o que pode acontecer nos próximos anos. Trazem, sem dúvida, violência e sofrimento. Mas um dos pilares do Cristianismo é a virtude da esperança. Um dos pilares de qualquer sociedade, cristã ou não cristã, é a resistência à morte. Como homens temos de lutar pela vida. Como cristãos temos de cultivar e esperança, sem perder a lucidez nem a responsabilidade. Jesus Cristo não veio para nos propor a resignação, mas para nos ensinar a lutar. O que Jesus promete aos seus discípulos e a nós mesmos não é uma vitória fácil, mas a salvação. É Ele quem nos convida a descobrir na História a manifestação da transcendência divina. Nada nos pode separar do amor de Cristo. Permitam-me, pois, que repita aqui as palavras do Papa João Paulo II no primeiro discurso do seu pontificado: «Não tenhais medo!». Talvez tenhamos de viver dias difíceis. Ou mesmo muito difíceis. Mas quem se identifica com Jesus Cristo não pode ter medo de nada.»

(excerto de «O Tempo de Santa Beatriz da Silva», in Santa Beatriz da Silva - Uma estrela para novos rumos, Princípia, 2013)

30.10.13

GRACILIANO RAMOS


De manhã, ao lavar-me, notei que alguém se esgoelava no chuveiro próximo, recitando 'Os Lusíadas':
As armas e os barões assinalados...
A água jorrava com forte rumor, alagava o chão; diversas torneiras abertas, resfôlegos, gente a esfregar-se, magotes conversando à porta, aguardando vaga. O vozeirão dominava o barulho:
E também as memórias gloriosas
Daqueles reis que foram dilatando
A fé, o império, a uretra...
Dei uma gargalhada, ouvi este comentário:
- Hoje não se dilata império nem fé. Essas dilatações vão desaparecendo. Agora o que se dilata é a uretra.


(excerto de Memórias do Cárcere, 1ª edição portuguesa: Portugália Editora, 1970)

29.10.13

N. SCOTT MOMADAY


Cemitério da Montanha Chuvosa

O teu nome é quase todo ele o nome desta pedra escura.
Transtornado na morte, com a mente para sempre
Unida ao imaginário desconhecido,
Aquele que aqui e agora escuta para ouvir o teu nome
Ouve a velada do audível nada.

Corre pela planície o sol da madrugada, rubro como o luar do caçador.
A montanha incendeia-se e brilha;
O silêncio é o meio-dia aproximando-se lentamente
Da sombra que o teu nome explica -
E a morte esta fria e negra densidade da pedra,



(tradução de Júlio Henriques, in "Flauta de Luz - Boletim de Topografia", N.º 1 / Janeiro de 2013)

28.10.13

ALBERTO DE LACERDA


Trabalharei não longe
Das superfícies ásperas
Densas generosas

Dedicarei meus dias
Aos dias e às noites
Presentes a quem vive
Nas ruas e nos astros
Sem divisões sinistras

Voltarei sem querer
Aos lugares sagrados
Descansarei imenso
(Entre guerreiro e lâmina
Serei folha à deriva
Livre e indivisa)

Austin
15 de Maio 75

A David Wevill

Trabalharei nos sons
Na bainha
Do cereal doirado

Trabalharei (a cabeça
Em repouso absoluto
Sobre a tua mão)

Trabalharei no silêncio
Que conduz ao passado

Evitarei
(Se possível)
Certas palavras

Serei o muro

O sol bate de chapa
No meu rosto

Austin
15 de Maio 75

A sombra que vem depois de sol
É habitada
É uma sombra feliz

A sombra que sucede à luz mui forte
É grávida de cor afirmativa
Estabiliza os caudais
Da imaginação
Pinta seus recantos obscuros
Reconcilia tudo

Austin
15 de Maio 75

(primeiros poemas de Meio-Dia, Assírio & Alvim, 1986)

27.10.13

MANUEL DE FREITAS


1998, LOU REED

Foi tão estranho. O barulho
do nada sobrepunha-se
nas mais diversas línguas
àquela frágil tentativa de concerto.

Enquanto nós, trio deveras
implausível, comprávamos
vinho mau e sandes de chouriço.
Não era bem o apogeu de Lisboa;
seria antes o princípio da morte,
indiferente aos fogos de artifício
que haveriam de selar o desencontro.

Preferíamos, sem dúvida,
uns restos de magia,
uma desculpa qualquer para estarmos
efectivamente ali, depois de poluídos
- e só mais tarde rasgados –
os lençóis que nos cobriam.
(That’s the story of my life.)

O Tejo, talvez por vossa causa,
nunca me pareceu tão triste.


(de Jukebox, Teatro de Vila Real, 2005)

17.10.13

DANIEL MAIA-PINTO RODRIGUES


Outubro
mês dos figos maduros
da perfeita tranquilidade
mês
em que das eiras
perdigueiros correm para os currais
e dos currais se ouvem burros e éguas
outubro
mês dos patos nos ribeiros
mês das serras, das perdizes
dos ferreiros, das cegonhas
das paisagens, das feiras com queijo
do sr. sebastião e dos alpendres
outubro
mês dos meus avós vivos
levando-me a ver os moinhos de água


(de O Valete do Sétimo Naipe, Felício & Cabral, 1994)

14.10.13

BEN CLARK




(chanson)

Há sacos do lixo com asas e sem asas.
Há sacos do lixo com perfume
e outros feitos de fécula
de batata (rompem-se num instante).
Há sacos de cozinha e outros sacos
para um contentor comunitário.
Há sacos de design que parecem aquários
mas estes também são apenas lixo.


(tradução minha - original de Basura, Editorial Delirio, 2011)
EDUARDO GUERRA CARNEIRO



IV

Há nomes de luxo onde o lixo
arde — bouças chamejantes.
Medo é a palavra exacta nas travessas
quando bandos circulam protegidos
pela finança alta e licenciada.
Se ele diz que há cavalos e cães
e fala dos doutores, esquecem
que no fundo era o mercado.
O país ergue-se em peões e os baldios
em chamas. Volta ao restolhar do milho
e camponeses dizem da lavoura,
da fome e da calúnia. Basta
olhar os murais onde esse luxo
se transformou no lixo capital.

A canalha junta-se nos pátios
no lusco-fusco de alguns entardeceres.
Galinhas debicam, entre caliça e cimento,
nos torrões onde pode estar semente ou grão.
O bolor cresce, com a humidade, em caixotões
encostados, a esmo, pelos cantos. A canalha
canta nos lugares — nódoas de vinho
e sangue misturados. O ódio ressuma
das frinchas dos tabiques. Na lama
desses pátios surgem flores carnívoras,
alimentadas a grogue e lavadura.
Crioula é a voz, a desmaiar no violão
e o azul ultramarino invade a cantina.
A hora do lobo ainda junta essa canalha.

Não penses que a canalha é lixo.
Nunca o foi. Na secura das terras,
fouce a fouce, ergue as colheitas
dos teus alimentos. Não julgues a canalha
o bode expiatório destes dramas. Lumpen
é quase luz noutra reforma dita
dura. Ouve as sirenes da polícia
e as ambulâncias solenes da morte.
Entre os espelhos quebrados dessas lojas
estão os focos do incêndio dos costumes.
Alarma-te: metrópoles em pânico
estão a arder. Não penses que o lixo
é só ao lado. Eis que ele se aproxima,
raia a raia.


(de Lixo, &etc, 1993)

13.10.13

JOSÉ RICARDO NUNES


NÓS, AS CRIANÇAS

Trocamos as cores,
desconhecemos onde acaba a mão direita
e recomeça a esquerda.
Inventamos novas palavras sem saber
que desde sempre havia mundo para elas.
Ou roubamos às sílabas.
Mas somos ainda menos do que crianças,
muito menos do que aquelas crianças
que levam tudo à boca.


(de Novas Razões, Gótica, 2002)

12.10.13

JOSÉ RÉGIO


Ora, indiferente às correntes nacionalistas estudadas no capítulo anterior, uma arte digamos cosmopolita, e mais ou menos contemporânea daquelas, começava de se revelar nas tentativas da nova geração. Alguns dos artistas que então se ensaiavam, e depois vieram a criar um nome, sofriam essa torturada ânsia de novidade e libertação que fez da arte moderna uma empresa dramática. A esses, e a alguns que se lhes seguiram e os continuaram, se chamou modernistas. As mais arrojadas concepções estéticas apareciam então lá fora, ou haviam aparecido, — proclamando cada qual por sua vez a descoberta da verdadeira arte actual: O futurismo italiano, o cubismo, o dadaísmo, o ultra-realismo franceses, o expressionismo alemão e todas as correntes mais ou menos derivadas ou apensas — lançavam então ao ar o fogo dos seus manifestos estridentes, rangentes, intolerantes: fogo que algumas vezes ameaçava apagar-se com uma facilidade proporcional à com que esfuziara. Em tais manifestações se misturava o espírito de blague e sarcasmo com a seriedade consciente ou involuntária. Não se via, talvez, aparecerem as obras-primas de arte que, devidas embora ao génio individual, para sempre ilustram uma escola, uma corrente, uma época; mas vincava-se uma atitude de inconformismo e aventura, procura e audácia, decerto favorável à criação libérrima: O romantismo erguia a sua nota mais aguda — atingia as suas extremas consequências. As próprias manifestações estéticas dos povos primitivos, das crianças, até dos moradores dos manicómios e cadeias, eram estudadas, pelo menos coleccionadas, com um interesse inquietante e sôfrego: Nelas se pretenderia sugar uma arte inédita, mais sintética e, pensava-se, mais pura; isto é: mais nua de todos e quaisquer preconceitos e convenções de origem mais ou menos academicista. Simultaneamente, o cabotinismo, a superficialidade e a moda rebuscavam tudo cuja antiguidade, cujo esquecimento, cujo desconhecimento ou cujo exotismo pudessem sugerir, ou simular, o ineditismo duma criação nova. Reinando no mundo da arte a complexidade, a confusão, a inquietação, o desvairamento, — os charlatães sentavam-se à mesa dos príncipes, os servis confundiam-se com os grandes senhores. Ainda hoje nem sempre é fácil separar uns e outros.


(excerto do capítulo «O Modernismo em Portugal», de Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa, 2ª edição, corrigida: Editorial Inquérito, 1944[?])
VASCO GATO


Regras do esquecimento

Não esqueças sobretudo a armadura
da noite,
a aspereza das estrelas
quando os olhos são recentes
e a gravitação é como um poder
sucinto nas mãos.

Não esqueças sobretudo como os cereais
lavram os campos estafados, destilam
prodígio pelos sulcos da memória,
oferecem-te uma vida maior
em troca do sal
das pálpebras.

Não esqueças sobretudo de olhar devagar.


(de Imo, Quasi edições, 2003)

11.10.13

MARIA ALZIRA SEIXO


NOITE INFLECTIDA

Desaparece assim teu encanto solar de redomas frágeis atraindo chispas vermelhas sobre as pedras nuas. Encantamentos frouxos que mutáveis te abrem os ares tão agrestes da manhã. Olha esse astro que então abandonaste por incauto revertimento a áridas páginas que te tomam na morte da imagem, e não lhe desapegues a incomensurável brandura de tecedura limpa, nitidez reflexiva da morte cruel dos outros. Vê o espanto. Repara no que frágil anoitece e rubro volta em cada grito de presença por sinal maligna. Que do teu entendimento a forte perda se enreda pelos tumultos da escrita lisa, esse sentido do teu embevecer. Perdoarás as manchas, porém nunca as mansas quietações redundantes dos alvores da descoberta. Porque o sabes te esvais e renasces em cada hora do mais puro infinito discorrer dos mundos.

para o António Ramos Rosa

(de Flores de Lava, in letra da terra, o oiro do dia, 1983)

10.10.13

JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA


OS OBJECTOS NO LUGAR

Há por sorte um espelho que parece
mentir, sem questionar, em cada novo dia.
O teu problema não é apenas acordar, são as dores
nas costas e a devolução da ameaça
de uma barba mal escanhoada. Foi outra noite

nem muito ingrata. Os objectos estavam
no lugar, a sombra do teu passado
nem muito perseguida pelos maus hábitos
e a nostalgia das ocasiões perdidas;

o mal que te fizeram mensageiros ímpios,
notícias desatadas, viagens que soçobraram
nos alivanhos, o ruído assustador de quem quer
viver. Uma fadiga que te corta o lábio,
onde o sabor do sangue se insinua

e entre destroços e a boca aberta de afogados,
o rei em Agelaos ordena que
escrevam o teu nome e o do teu pai
e o do local onde nasceste.


(de O que Vai Acontecer?, Assírio & Alvim, 1997)

9.10.13

ANA HATHERLY


A PALAVRA MISTERIOSA

a António Ramos Rosa

Sobe da sombra mais opaca
a tua figura radiosa
oh palavra misteriosa!

No obscuro pulsar de cada acto
reconstróis tudo por ausência
e o sentido consentido
sobe sem esforço as tuas escarpas

Potencial qualidade do outro
o teu segredo está
numa parábola
numa elipse
num ponto só
infinitamente alheio e sem medida


(de O Pavão Negro, Assírio & Alvim, 2003)

7.10.13

OLGA GONÇALVES


liberdade

vês. ao pé da mancha branca, a meio da vertente. vês. ao pé do souto. um pouco mais acima. sim. aquelas fragas. ali, os meus irmãos e eu brincávamos às guerras, e cada um escolhera o seu castelo, brincávamos à forma, ao sangue ainda cru, ao gelo muito azul, ao delírio dos castiçais no braço íngreme da montanha.

da ponte levadiça, eu, silvestre, gesticulava aranhas. dava bocadinhos de figos às borboletas. antecipava os nocturnos para a vigília de todos os animais dos meus espelhos.

agora a língua bate a paisagem que se tornou imóvel, amadurece e apodrece o líquen em cada ponto essencial da fraga, na última batalha, hoje abstracta combustão de ferros, deixei um grande resplendor. iluminuras vivas. era setembro violento e seco. ao fundo, perto dos salgueiros, o abismo do outono respirava. eu pensava nos mortos. no bafo da maçã. na pausa das imagens sobre a água. no buraco da rocha onde pudesse gritar liberdade. e a palavra caminhasse, sem tremer, até ao outro lado e acordasse os outros. e abrisse pórticos na treva.


(de Caixa Inglesa, edições Rolim, 1981)

6.10.13

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE


FANTASIA PARA VIOLA

Ouvi uma das noites deste outono
as fantasias para viola de Henry
Purcell. Já as conhecia. Pela
noite de Óbidos
Savall ia apresentando um por um
os intérpretes, e dizia um pouco
sobre a história de cada viola da
gamba dedilhada, e também sobre
o violone tocado pelo senhor
Lorenz Duftschmidt, austríaco a
quem, e não sei por que razão
oculta, fixei o nome. Quando
chegou a Montserrat Figueras, que
entre as peças cantou além de
Purcell, Byrd, talvez com o sentido
de amenizar o tempo que era
necessário, entre as fantasias,
para o afinamento das violas que
obrigavam a rápidos desacertos, à
fuga de uma nota áspera na húmida
igreja de S. Tiago, intramuros. E
ele disse de Montserrat Figueras
«o único instrumento contemporâneo,
a sua voz».
Ninguém poderá saber como chegaram
as harmonias das violas que tocaram
Purcell
a este castelo que foi o centro do
mundo da minha infância; eu sei
ou julgo que sei todas as cores que
pelo outono descem o pano das
muralhas até ao mar,
do alto das ameias vê-se que não é
longe, basta seguir o áspero
caminho dos sentidos e depois tudo
se passará como quem descobre o
parentesco entre deus e o mundo.
Castelo e muralhas já não são
pedras de nenhum destino, a voz
foge da pressão da vida, queria
que cantasse sempre,
sem parar,
eternamente.


(de Não É Certo Este Dizer, Editorial Presença, 1997 / colecção forma)


5.10.13

VÍTOR NOGUEIRA


CLICHÉ

Não é que seja o momento para trocar
cartões-de-visita. José Maria da Silva,
fotógrafo profissional com estúdio em Lisboa,
tem por hábito mudar-se para a vila da Ericeira
na época balnear. Ainda está por aqui

no dia 5 de Outubro. Um notável testemunho
(gelatina e sais de prata, memória pronta e fiel)
que, com sorte, há-de chegar à Ilustração
Portuguesa. Além disso, uma kodak não tropeça
em estrangeirismos, ornatos de saber clássico,
no jeito francês da frase, nos defeitos da sintaxe.

José Maria da Silva, fotógrafo profissional,
passa o resto da tarde com um nervoso
miudinho. Até revelar as chapas. Olhem bem
para estas caras, estas formas do passado. Nada mais
para seres humanos. Pode dizer-se que sim.



HORIZONTE

O iate real segue o fio do horizonte,
essa linha escorregadia ao dispor dos que se atrevem.
E de novo a Ericeira fica à espera do crepúsculo.
Antigos embarcadiços podem agora sentar-se
nos bancos de pedra que rodeiam a capela, espraiam
a vista saudosa pela vastidão do mar.

O mar, sempre o mar. Acontece que somos bons
nisso: lágrimas e suspiros, coisas que brilham
no escuro e dependem dos ventos dominantes,
indícios levados pelas águas. Senhoras e senhores
fantasmas, o museu está oficialmente fechado.
Afastem-se do meu jantar.


(de Quem diremos nós que viva?, Edições Averno, 2010)

4.10.13

ANTÓNIO GANCHO


MÚSICA

A música vinha duma mansidão de consciência
era como que uma cadeira sentada sem
um não falar de coisa alguma com a palavra por baixo
nada fazia prever que o vento fosse de azul para cima
e que a pose uma nostalgia de movimento deambulante
era-se como se tudo por cima duma vontade de fazer uma asa
nós não movimentamos o espaço mas a vida erege a cifra
constrói por dentro um vocábulo sem se saber
como o que será
era um sinal que vinha duma atmosfera simplificante
silêncio como um pássaro caído a falar do comprimento.


(de O Ar da Manhã, Assírio & Alvim, 1995)

3.10.13

CARLOS BESSA


SAÍDAS PROFISSIONAIS

De repente, sem pose nem porquê,
desata a escrever como um vidente,
como um Rimbaud. Ele, o revoltado,
que publicará não tarda três ou quatro
poemas numa dessas revistas que
ninguém lê e que o tempo tornará
raridade, se contiver nomes que
sonem, que façam a alegria de
alfarrábios e coleccionistas.
Mas por ora é apenas silêncio,
sufoco. Ninguém lhe diz nada, nem mesmo
os amigos mais chegados. E como
ainda não sabe que a literatura
é sempre essa alquimia de esperar,
vai-se esquecendo. O ritmo é outro.
Não o dos versos, mas o da carreira.
Tornar-se-á um gestor de primeira e
acabará os dias rico e feliz,
a dizer aos netos que a poesia é
uma mentira e que ele teve sorte,
abriu os olhos a tempo.



ALÍVIO RÁPIDO

A idade da poesia cedo nos abandona.
A prosa, pelo contrário, vai-se tornando imperativa,
obriga-nos às flexões da fala e encobre,
com elas, possibilidade tão bela, tão nobre.
Como se falar fora maneira de transformar
o menos em muito, e assim em paz com os sonhos
e com menos ânsias nos dedicássemos
à arquitectura das grandes causas,
a família, o emprego, as heranças.
Morre-se tanto à espera da sorte grande.
Por isso, quando dizes amanhã todo eu me esforço
por não cair no mau teatro dos cúmulos,
o do forno, o da panela ao lume. Mas, confesso,
as palavras enchem-se de crude e empoladas
e vulgares, nesse tom tão rente ao risível,
não dizem, planam, afectadas, vazias.
Só depois me lembro que o amanhã é próprio
da meteorologia e que esperar
foi sempre um propósito digno. Mais não seja
porque o coração precisa de uma ginástica
rude, que o endureça e torne elegante.


(de Dezanove Maneiras de Fazer a Mesma Pergunta, Teatro de Vila Real, 2007)

2.10.13

WALLACE STEVENS


XIX

Quem me dera que pudesse reduzir o monstro a
Mim mesmo, e pudesse então ser eu mesmo

Face ao monstro, ser mais do que parte
Dele, mais do que o monstruoso tocador de

Um dos seus monstruosos alaúdes, não ser
Só, mas reduzir o monstro e ser,

Duas coisas, as duas em simultâneo numa,
E tocar do monstro e de mim mesmo,

Ou melhor, não de mim mesmo de modo algum,
Mas de algo como a sua inteligência,

Sendo o leão no alaúde
Perante o leão encerrado em pedra.


(de O Homem da Viola Azul, tradução de Maria Adelaide Ramos, Relógio d'Água, 2005 / The Man with the Blue Guitar, 1937)
ROBERT BRINGHURST


II

O pássaro é da cor do bronze duro
à luz solar, porém agora é meia-noite;
o pássaro da cor do bronze duro
à luz solar voando agora
sob a Lua.

Há um ponto em que
os meridianos se encontram num nó
de nada e uma região
onde os meridianos se desfiam e entrelaçam,
mas não como linhas ancoradas; desfiam-se
quais condutoras e arrastadas bordas
de asas, correndo do vazio
para o músculo e do músculo de novo se esticando para trás.

Escuta: os sons são os sons dos meridianos
chilreando, meridianos arrastados para produzirem
a ilusão de plectro, afinando cravelhas e um arcaboiço,
ou porventura a fim de produzirem a audição
de Elias: a pele
do silêncio a salgar,
sendo curtida,
endurecendo para o interior do vento.

Ou então os sons são os sons do ar a abrir-se
sobre o bico e a fechar-se sobre as asas,
abrindo-se por sobre o inamovível carregamento amarrado
entre a espinha e a garra,
amarrado entre o osso da asa e o cérebro.



(de A Beleza das Armas, tradução de Júlio Henriques, Antígona, 1994)

1.10.13

TIAGO PATRÍCIO


OS FALCÕES PEREGRINOS DO ANTIGO TERRITÓRIO DE NOVA YORK

O chefe índio Dois Pássaros baloiçava as tardes
com a mescalina oferecida pelos Falcões Peregrinos
siameses pela cauda como duas visões do mundo

Um era verde e o outro azul como espinhos
O azul cuspia fogo numa planície da altura das monções
engordava como um dragão a sufocar a terra
e enrolava restos de gente pelo vale estéril

O verde corria pelo golfo à hora de maior calor
deslocava os rios como mulheres nubladas
e quando descia à pátria deixava um hálito fundo
com o lamento de um retornado

O chefe índio perguntou
até onde durava a violência
e quando poderiam voltar àquela terra
E eles disseram coisas indistintas e
falaram do ar pesado durante muito tempo
com as asas um do outro até acabar a mescalina
e começar outra forma de aturdimento



(de O Livro das Aves, Quasi edições, 2009)

30.9.13

MIGUEL-MANSO


escreve-se ao contrário dos dias
contra o friso comovedor das gerações
ignorado das cabriolas doutrinais

não se escreve e há também nisso
um aluimento qualquer

corpo afim precipitado para o penhasco
sombrio do mesmo esquecer


(de Aqui podia viver gente, Primeiro Passo, 2012)

27.9.13

ANTÓNIO RAMOS ROSA


Exigir que a obra de arte tenha uma regulação perfeitamente lógica, resulta do equívoco de confundir dois níveis sucessivos, mas diferentes, do intelecto, o qual não pode ser apenas limitado à sua actividade porventura mais pura, mas também mais convencional: a do discurso lógico e racional. Na poesia e na arte clássicas, a intuição criadora submetia-se a uma organização lógica que não as impedia, efectivamente, de atingir a realidade poética através da combinação das qualidades sensíveis que, quer a poesia, quer qualquer forma de arte, põem em jogo. Todavia, essa superestrutura lógica interpunha-se como um obstáculo ao livre desenvolvimento da imaginação e da emoção criadoras. Na poesia e na arte modernas, o processus criador liberta-se completamente da regulação lógica, desenrolando-se através de estruturas próprias, que se organizam não-racionalmente em ordem a uma nova realidade que se torna, assim, fruto mais directo e mais fiel da inicial intuição criadora. O facto de não haver regulação lógica não destitui a obra de uma estrutura coerente, nem de uma significação própria: pelo contrário, a sua estrutura e significação ganharam um grau de pureza e densidade específicas, que são a resultante inevitável da evolução histórica dos processos artísticos.
De tudo isto se conclui a necessidade de revisão do conceito de poesia e de obra de arte, que já não podam aferir-se pelos critérios do passado. As relações entre obra de arte e espectador sofreram já uma alteração substancial. O conceito de obra «aberta» implica uma nova comparticipação do consumidor estético. A uma poética do unívoco, que corresponde a um mundo estático, sucede-se uma poética de polivalência e ambiguidade, onde tudo é movimento. Mas tal processo não se iniciou sequer no século passado: é um processo que remonta à perspectiva dinâmica que nos oferece a arte barroca, como acentua Umberto Eco. É a partir daí que as poéticas «tendem a promover estas atitudes de invenção criadora do homem novo, que já não vê na obra de arte um objecto de pura dilecção estética, fundado em relações explícitas, mas um mistério a penetrar, um fim a atingir, um apelo permanente à imaginação». Através de uma criação livre, o artista continua a procurar e a descobrir a sua unidade com o universo, de que comparticipa numa aventura sem fim.»


(excerto de «O Poema, sua Génese e Significação», in Poesia Liberdade Livre, 2ª edição: Ulmeiro, 1986 - artigo publicado originalmente em 1960)

23.9.13

ANTÓNIO RAMOS ROSA


Em qualquer parte um homem
discretamente morre

Ergueu uma flor
Levantou uma cidade

Enquanto o sol perdura
ou uma nuvem passa
surge uma nova imagem

Em qualquer parte um homem
abre o seu punho e ri


(de Viagem através de uma Nebulosa, 1960)

22.9.13

GABRIELA MISTRAL


UMA PALAVRA

Eu tenho uma palavra na garganta
e não a solto, não me livro dela
mesmo com todo o empurrão do sangue
Se a libertasse, queimaria pastos,
sangraria cordeiros, cairiam pássaros.

Eu devo desprendê-la desta língua,
encontrar um buraco de castores,
sepultá-la com cal e argamassa
pra que não guarde como a alma o voo.

Não quero dar sinais de que estou viva
enquanto circular pelo meu sangue
e suba e desça no meu louco fôlego.
Embora o meu pai Job, ardendo, a tenha dito,
não quero dar-lhe a minha pobre boca
para que não a encontrem as mulheres
que vão ao rio, se prenda às suas tranças
ou se enrede no pobre matagal.

Violentas sementes vou lançar-lhe,
pra que uma noite a cubram e a afoguem
sem deixar dela o rasto de uma sílaba.
Ou destruí-la assim, tal como a víbora
se parte em dois pedaços entre os dentes.

E regressar a casa, entrar, dormir,
já isolada, separada dela,
e acordar depois de dois mil dias,
recém-nascida em sono e esquecimento.

Sem saber, ah!, que tive uma palavra
feita de iodo e alúmen entre os lábios,
nem poder recordar-me de uma noite,
de uma morada num país alheio,
da cilada ou relâmpago na porta,
a minha carne a andar sem sua alma.


(in Antologia Poética, selecção, tradução e apresentação de Fernando Pinto do Amaral, Teorema, 2002 - original de Lagar, 1954)

17.9.13

JORGE DE SENA

[...] como sublinhei, indirectamente num dos “exorcismos”, não sou dos tolos que voltam para o anonimato quotidiano por parte destes ladrões de estrada, que compõem, com honrosas excepções, esta pátria de alguns heróis e muitos malandros. No entanto, sente-se finalmente uma efervescência e uma consciencialização indignada, a todos os níveis populares, de que é preciso sair do beco e “andar para a frente” – e, sobretudo, uma revoltada exigência de que a ladroeira e a negociata sejam postas na ordem (o que pode, também, abrir caminho a todos os perigos – mesmo de D. Sebastiões chamados Spínolas).

(carta a Helder Macedo, datada de «Lisboa, 17 de Agosto de 1972»)

16.9.13

VÍTOR NOGUEIRA


GEOLOGIA

Às vezes são homens de bem
empurrados para esta vida,
resquícios da erosão da montanha,
paisagens antigas
enterradas sob o gelo.

Nada está garantido
numa geologia tão frágil. Este chão
pode virar-se sem aviso.
Ainda assim, sejam bem-vindos,
fiquem tristes à vontade.

(de Mar Largo, &etc, 2009)

15.9.13

GILBERTO MENDONÇA TELES


CAMUFLAGEM

Havia um sujeito puro,
capaz das coisas mais ternas.
Veio o mundo com seus m'urros,
com seus disfarces de fera

(casco de ouro reluzindo
na arquitetura da noite)
e transformou tudo em cinza
na gestação de seus coices.

Cavalgou pelo silêncio
seus cavalos cor de barro
e foi largando no chão
o -ão do não de seus passos.

Depois, com dentes e unhas,
mostrou-se inteiro, no avesso:
era outro i'mundo, mas c'ego,
não tinha garras aduncas,

não tinha amarras nos murros,
não era fúria nem f'era,
nem viu o sujeito puro,
capaz das coisas mais ternas.


(de A Raiz da Fala, 1972)

10.9.13

LUÍS FILIPE PARRADO


Olhas as palavras
mas não vês nenhuma luz.

Olhas as árvores
e vês troncos, ramos, a variada folhagem.

As raízes tens de as imaginar.
Ou escavar a terra.

Agora olha, de novo, as palavras.
Agora, como olhas as árvores.

E tens de imaginar agora.
E escavar, agora, a terra.


(de Entre a Carne e o Osso, Língua Morta, 2012)

7.9.13

JOSÉ RICARDO NUNES


ALMEIDA, Francisco António de
(c. 1702-1755)



A água que sobe a Lisboa
e reflui, destruidora, no primeiro de Novembro
de cinquenta e cinco, só me poupa um retrato
cuja legenda comprova ter sido
"bravo compositor de Concertos e de Música de Igreja"
e "um assombro no canto, com inatingível gosto".
Uma surpresa, o teu júbilo com a reedição
exclusiva para o mercado português
de 'La Giuditta', adquirida num centro comercial
por preço acessível depois de muito imaginares
que música eu seria. No booklet enaltecem
a "precisão da escrita" o "domínio
da orquestra", o "tratamento concertante
das vozes", "a inesgotável
inspiração melódica". Tudo mereceu
o resgate de Jacobs, quase
tudo, pois aqui e ali não me interpreta
devidamente. Parece-te poema?
Tinha vinte e quatro anos. Sentia-me na obrigação
de agradecer ao Marquês de Fontes o apoio
da sua Embaixada durante a estadia
em Roma, onde pude aprender,
aperfeiçoar o estilo e pôr-me a par
das novidades. Suposto imaginar
o regresso a Lisboa, a condescendência
do ouro, a Sé, a Capela Real, os Infantes, a súbita
subida na escala das águas?


(de Compositores do Período Barroco, Deriva Editores, 2013)

 

22.6.13

CARLOS POÇAS FALCÃO


COMPOSIÇÃO MEDITATIVA II

Não sou um indignado. Sei que o mundo passa
bem sem mim — o que é justo e me assinala a grande liberdade.
Procuro manter a dignidade, estou a envelhecer e no entanto
pronto a começar. Afinal está provado o sem sabor de tudo
— a não ser daquilo que começa, do que é inicial,
ou seja, desde sempre. Aí regresso a horas repentinas,
muitas vezes entre um desencontro e o café.
Isso é terrível e procuro manter a dignidade.
Foi numa dessas horas que descobri que Deus
não passa bem sem mim — o que não me indigna
e também não me alivia da grande liberdade. Afinal
ser homem para Deus é o sabor inicial.



 

(in "Telhados de Vidro", n.º 18 | Maio 2013)